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O mistério da Gávea: por que a torcida do Flamengo não conhece o seu estádio?

Nas primeiras duas décadas do século XXI, os torcedores do Vasco da Gama, equipe que ostenta a alcunha de gigante da colina, vivenciaram a pior fase da história do clube. Rebaixamentos do time de futebol, embates políticos intermináveis, interdições do estádio e uma escassez de títulos nunca vista no século anterior. O clube que se orgulha dos seus feitos fora e dentro dos campos, amargou uma fase que abalou os pilares do orgulho cruzmaltino.

Mesmo sofrida, a torcida vascaína nunca abriu mão do compromisso com a recuperação da instituição. Como diz o lema da campanha de marketing que estimula a paixão dos adeptos, “o sentimento não pode parar”. E, de fato, nunca parou. Mobilizando diversos elementos históricos da identidade vascaína, o clube seguiu reforçando o seu vínculo de encantamento com as arquibancadas, mesmo com a realidade dos gramados sendo desalentadora. E, sem dúvidas, o estádio de São Januário foi um dos recursos de manifestação da autoestima vascaína mais acionados para tentar preservar o orgulho dos torcedores.

Bradando a plenos pulmões, todos os setores de São Januário entoam com frequência nas partidas do time a seguinte canção: “Vascão ole, ole, ole/ E no Maraca eu vou curtir/ Em São Janu vou me acabar/ E a mulambada toda chora/ Não tem estádio pra jogar”.(https://www.letras.mus.br/guerreiros-do-almirante/1221770/, último acesso em 30 de outubro de 2023). São Janu, como aparece carinhosamente na letra da canção, é a casa do Vasco e fica localizado na zona norte do Rio de Janeiro, em uma área habitada por pessoas de baixa renda, próximo a principal via que interliga o centro da cidade aos bairros da zona norte e da zona oeste, a Avenida Brasil. O estádio construído nos anos 1920 é um patrimônio da cidade e um símbolo de grandeza e popularidade histórica do clube.

Nesses termos, os vascaínos se orgulham de ter estádio. Já a “mulambada”, gíria utilizada na atualidade para se referir a torcida do arquirrival Flamengo, chora por não ter onde jogar. Sempre associada aos códigos de inferioridade de classe, a torcida rubro-negra ouve com frequência provocações sobre a falta de um estádio próprio, uma casa para as atuações da equipe flamenga.

Sabemos que o Maracanã, estádio que nasceu municipal, cresceu estadual e morreu privatizado, é o principal palco de exibição da agremiação mais popular do Brasil. Muitos títulos e recordes de público do futebol brasileiro foram alcançados pelo Flamengo no Estádio Mario Filho. A grandeza dos números que cercam a relação Flamengo-Maracanã talvez ajude a ofuscar um fato que vem sendo esquecido há anos pelos torcedores e até mesmo moradores em geral da cidade do Rio de Janeiro. Sim, O Clube de Regatas do Flamengo tem um estádio. Um estádio que nasceu para ser o campo de futebol do clube mais popular do país. O Estádio José Bastos Padilha, inaugurado em 1938, mais conhecido como Estádio da Gávea.

Os motivos que levaram ao gradual apagamento do Estádio da Gávea da memória dos torcedores são diversos e complexos. O fôlego deste artigo introdutório não consegue dar conta dessas questões, que perpassam toda a segunda metade do século XX. O objetivo, então, deste texto é apenas apontar para a relevância da construção do estádio no momento da sua fundação como um marco da modernização de uma região da cidade que nos anos 1930 era afastada e nada privilegiada. Reiteramos, ao contrário do refinamento dos dias atuais, a região da Gávea era uma área pantanosa e repleta de problemas para ocupação quando o clube recebeu a doação do terreno para a construção da sua nova praça de esportes.

Portanto, este artigo, pontapé inicial de um projeto sobre os impactos dos estádios de futebol nos bairros da cidade do Rio de Janeiro, São Paulo e Niterói, busca mostrar, em sua primeira parte, como o Estádio da Gávea foi exaltado como símbolo do progresso do desporto carioca no momento da sua inauguração. O projeto intitulado “Memória e cidade: estádios de futebol no Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo (1937-1950)”, contemplado pelo edital Universal Cnpq/2021 e coordenado por Lívia Gonçalves Magalhães (Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), tem como objetivo central reconstruir as trajetórias biográficas das praças esportivas no âmbito de uma história social e cultural do futebol nas cidades de Niterói, Rio de Janeiro e São Paulo entre 1937 e 1950. Partimos do pressuposto de que os estádios desempenharam um papel crucial na difusão deste esporte no país e, por isso, sua importância transcende a materialidade arquitetônica, configurando-se como fenômeno socioespacial. Assim, parte-se da premissa de que através da recuperação das memórias, histórias e narrativas sobre as cidades, tendo os estádios como fio condutor, será possível lançar novos olhares locais a partir da sua inserção em um espaço-tempo futebolístico, contribuindo para uma maior compreensão do seu processo histórico e geográfico.

Claro, a torcida vascaína tem toda razão ao desconsiderar a possibilidade do Flamengo mandar seus jogos no acanhado José Bastos Padilha nos dias atuais. Correto, a gozação faz todo sentido. Mas, na contramão das brincadeiras identitárias que compõem as rivalidades clubísticas, este texto busca destacar a construção do hoje ignorado Estádio da Gávea como um símbolo de grandeza do futebol carioca e da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1930.

Estádio da Gávea
Fonte: Wikipédia

Esqueceram da Gávea!

Com certeza, poucos rubro-negros conhecem a Gávea por dentro. O último jogo da equipe profissional no estádio foi pelo Campeonato Carioca em abril de 1997. Com o investimento no Centro de Treinamento George Helal, popularmente conhecido como Ninho do Urubu, localizado no bairro de Vargem Grande, nem mesmo treinamentos dos profissionais e das categorias de base são realizados no estádio Bastos Padilha.

Com poucas atividades ligadas ao futebol, e com uma sede social que pratica preços excludentes para a associação, o torcedor rubro-negro criou o hábito de esquecer a Gávea. Não foram poucos os projetos que especularam a demolição do estádio, ou a transformação em shopping, sem que nenhuma parcela importante da torcida flamenga se levantasse pela defesa do estádio como um lugar de memória do clube. Por outro lado, podemos dizer que a recíproca é verdadeira. Dirigentes do clube e moradores do bairro nunca foram simpáticos à realização de jogos de futebol na Gávea. Os argumentos sempre foram diversos. Ausência de refletores – esse é um mistério – impacto no trânsito, vestiários ruins, cabines de transmissão obsoletas, tudo isso temperado pelo velho ethos aristocrático da elite da zona sul, historicamente antipática a presença dos populares da cidade nos “seus domínios”.

O estádio hoje, de fato, está em uma das regiões mais ricas da cidade do Rio de Janeiro. Com saídas para a Lagoa Rodrigo de Freitas e para o Leblon, o gramado do Bastos Padilha é um dos terrenos mais valorizados do país. Mas essa não era a realidade da região quando o clube adquiriu o espaço para a construção da sua praça esportiva. Em 14 de novembro de 1931, data em que o decreto n. 3686 de aforamento perpétuo do terreno foi assinado pelo interventor federal Pedro Ernesto (Jornal dos Sports, 14 de novembro de 1931, capa), a Gávea era vista como um areal distante e inóspito. Talvez isso explique porque a obra demorou dois anos para ser iniciada e sete anos para ser concluída. Apenas em setembro de 1938 o estádio foi inaugurado em um jogo entre Flamengo e Vasco válido pelo campeonato da cidade.

Além da distância, a região até os anos 1960 não abrigava apenas os membros mais endinheirados da elite carioca. Ao lado do estádio ficava um conjunto de favelas em torno da Praia do Pinto, na Lagoa Rodrigues de Freitas. Essas comunidades surgiram nos anos 1930 formadas por trabalhadores atraídos pelas obras de urbanização do bairro, que estavam inseridas na própria lógica da construção da nova praça esportiva do Clube de Regatas do Flamengo. Somente no final dos anos 1960, através de políticas de remoção das casas populares e de ataques criminosos aos seus moradores, a favela da Praia do Pinto foi retirada da região e uma série de empreendimentos imobiliários ocupou as ruas laterais do estádio.

Um dos nossos objetivos centrais na pesquisa é exatamente localizar as relações existentes entre a ocupação popular dessa região da cidade e a construção da Gávea, partindo da premissa de que os estádios de futebol da cidade cumpriram funções de organização de espaços de sociabilidade que foram além das dinâmicas estritamente esportivas. De modo geral, consideramos que os estádios foram promotores de modernizações inclusivas ao permitirem a presença de populares – seja nos eventos pontuais, seja no estabelecimento de moradias – em espaços urbanos circunscritos historicamente aos sujeitos sociais dominantes em uma dinâmica de modernização excludente. Talvez a Gávea seja um caso emblemático de observação da conexão entre a elitização do bairro e o próprio desuso da praça esportiva. O esvaziamento do Estádio da Gávea, nesses termos, poderia ser entendido a partir de uma redefinição excludente daquele espaço da cidade.

Estádio da Gávea
Fonte: Wikipédia

Em 1938, a Gávea era uma festa!

O ano de 1938 foi uma festa para o futebol brasileiro. O terceiro lugar no mundial disputado na França era, naquela ocasião, o melhor resultado da seleção de futebol nas Copas do Mundo e foi motivo de muita celebração nas ruas e por parte do governo (SOUZA, 2001). O Flamengo, equipe em que jogavam os ídolos nacionais Leônidas da Silva e Domingos da Guia, chegava ao final da década recuperado de uma severa crise financeira que quase fechou as portas do clube. Entre 1933 e 1937, durante a gestão do presidente José Bastos Padilha, o clube se estruturou, aderiu ao modelo profissional no futebol, ganhou novos sócios, redefiniu suas bases de identidade social com campanhas de publicidade de teor nacionalista e construiu sua nova praça de esportes (COUTINHO, 2019). A década de 1930 – ou a gestão José Bastos Padilha – marcou a modernização e a popularização do clube que passou a se declarar “o mais querido do Brasil”.

Em 04 de setembro de 1938, em função da inversão do mando de campo do jogo contra o Vasco da Gama, o Flamengo pode inaugurar o seu novo estádio. Na véspera da partida, o Jornal dos Sports destacava a grandiosidade da obra em sua capa, com uma fotografia enfocando a arquibancada e a bandeira do Brasil hasteada.

“Inaugurando o stadium com um grande match. O Flamengo enfrentará o Vasco, amanhã, na cancha a margem da Lagoa Rodrigo de Freitas (…) como já temos noticiado a parte já construída pode abrigar uma multidão de vinte e cinco mil espectadores”. (JORNAL DOS SPORTS, Rio de janeiro, 03 de setembro de 1938, capa).

Associação impensável nos dias atuais, as palavras Estádio da Gávea e multidão apareciam conectadas ao projeto de popularização do clube. E para além dessa relação entre clube e populares, as matérias enfatizavam como a inauguração daquela obra era parte do progresso do desporto no Brasil. No dia 04, data da peleja inaugural, a capa do JS era toda dedicada ao estádio, com a manchete estampando no alto da página: “com as vibrações do Flamengo, exulta todo o sport brasileiro”! (JORNAL DOS SPORTS, Rio de Janeiro, 04 de setembro de 1938, capa).

Ainda na capa, a foto do presidente José Bastos Padilha reforçava o vínculo entre o projeto de popularização do clube levado adiante em sua gestão com a construção do novo estádio, destinada a abrigar multidões em todos os esportes. A Gávea seria, no projeto gestado por Bastos Padilha, o espaço de realização dessa nova identidade flamenga: nacional e popular. E mais, seria a expressão do progresso esportivo brasileiro.

“Falar-se na grande obra que o Flamengo oferece aos sports nacionais – a soberba praça de sports da Gavea – ter-se automaticamente um nome que constitue um duplo symbolo de dedicação e desassombrado dynamismo: Bastos Padilha. Comprehende-se, antes do mais, que a cerimonia a ser realizada amanhã não representa senão uma parte do programa traçado pelo Flamengo. Trata-se de um plano de excepcional envergadura, de tal modo vasto, que deve ser encarado como tarefa de difícil execução para um só club. Digo ainda e com mais absoluta convicção – acentua Bastos Padilha – que uma vez completa a obra idealizada, o Brasil terá recebido insuperável campo para as Olimpiadas, no qual poderiam ser praticados todos os sports”. (JORNAL DOS SPORTS, Rio de Janeiro, 04 de setembro de 1938, capa).

A mesma edição do dia 04 de setembro continua a entrevista com o ex-presidente rubro-negro enfatizando que a Gávea era mais do que um novo campo de futebol para a cidade, era uma obra para o futuro do esporte nacional.

“Ninguém poderá contestar que o Flamengo deu agigantado passo inicial para o aperfeiçoamento da raça. A conclusão do monumental projeto será entretanto uma realidade desde que se levante um plano geral onde os esforços conjugados estarão a serviço de uma causa nobre, para maior grandeza dos sports brasileiros. (…) Nada do que foi feito será destruído, qualquer que venha ser o desenvolvimento do sport nacional. O Flamengo – conclue – quer um estádio visando o futuro!”  (JORNAL DOS SPORTS, Rio de Janeiro, 04 de setembro de 1938, p. 06).

Multidões, monumental, aperfeiçoamento da raça, causa nobre, futuro do esporte nacional. As ideias associadas ao novo estádio no dia da sua inauguração eram grandiosas e iam além do âmbito esportivo do Flamengo. Progresso nacional e desporto eram os pilares do projeto que a Gávea consagrava e se oferecia como espaço de realização.

“Um espetáculo soberbo em que se confundiram as vibrações sportivas e o enthusiasmo cívico” (JORNAL DOS SPORTS, Rio de Janeiro, 06 de setembro de 1938, capa), noticiou o JS no dia 06 de setembro. Desfiles dos atletas do clube, hino nacional, discursos exaltados de autoridades como o presidente da Confederação Brasileira de Desportos, o Sr. Luiz Aranha. O Flamengo, segundo o Jornal dos Sports, colocou em prática o seu lema na festa de inauguração do Estádio da Gávea: O Flamengo ensina o amor ao Brasil sobre todas as coisas.

Se hoje o estádio não mobiliza nem mesmo os moradores do bairro, que passam pelos seus muros sem nem mesmo saber como são coisas do lado de dentro, na sua fundação a Gávea foi exaltada como espaço moderno de projeção do esporte nacional. Algo se perdeu e isso é tema central da pesquisa que começamos a desenvolver a partir do seguinte problema: qual é o mistério da Gávea? Como a praça de esportes do clube mais popular do país, construída como um símbolo do progresso nacional, se tornou um espaço circunscrito a endinheirados sócios do clube? Esse é o problema que nos mobiliza a pesquisar sobre o Estádio José Bastos Padilha.

Ah, e sobre o jogo de inauguração, o Vasco da Gama venceu por 2 x 0. Se os vascaínos reconhecessem que a mulambada tem estádio para jogar, poderiam se orgulhar de terem vencido o primeiro jogo do Flamengo em seu estádio. De qualquer forma, com ou sem estádio para jogar, a gozação cruzmaltina está mantida.

Fontes e referências bibliográficas

COUTINHO, Renato Soares. Um Flamengo grande, um Brasil maior: o clube de Regatas do Flamengo e a construção do imaginário político nacionalista popular (1933-1955). 2° ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.

JORNAL DOS SPORTS

Página eletrônica https://www.letras.mus.br/guerreiros-do-almirante/1221770

SOUZA, Denaldo Alchone. O Brasil entra em campo: construções e reconstruções da identidade nacional (1930-1947). Rio de Janeiro: Anna Blume, 2008.

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Renato Coutinho

Professor de História do Brasil Republicano do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Rosana da Camara Teixeira

Antropóloga. Mestrado e Doutorado PPGSA-UFRJ. Pós-doutorado no Museu Nacional-UFRJ. Professora Associada da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora da Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural (Laboep-UFF). Editora da Revista Esporte e Sociedade (UFF). Autora do livro: “Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas” (Annablume, 2004). Coorganizadora do “Futebol na sala de aula: jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações para o ensino de Ciências Sociais e de História” (EDUFF, 2021) e do “Nada do Flamengo, tudo pelo Flamengo. Memórias da Torcida Jovem do Flamengo” (1960-1990). (UFRJ-Faperj, 2022).

Como citar

COUTINHO, Renato Soares; TEIXEIRA, Rosana da Câmara. O mistério da Gávea: por que a torcida do Flamengo não conhece o seu estádio?. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 13, 2023.
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