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O novo realismo de Ted Lasso

Leda Costa 10 de abril de 2023

O fenômeno dos haters nas redes sociais me fazem lembrar do futebol, afinal desde muito as arquibancadas e, até mesmo, as narrativas da imprensa são uma espécie de escola de formação de gente que destila opiniões raivosas, sem o mínimo pudor. É certo que esse sentimento é parte das nossas vidas e, também, é parte do futebol, afinal, em um espetáculo no qual as afetividades são constantemente acionadas, não podíamos imaginar que apenas o discurso do amor pudesse servir de alimento para o universo futebolístico. Há muito espaço para o seu reverso. A socióloga Janet Lever não deixou de reconhecer que o futebol é um poderoso produtor de símbolos compartilhados e, por isso, os “pontos focais de hostilidade também unem as pessoas” (1983, p. 157).

Olhando à primeira vista, o futebol poderia corroborar as constantes visões negativas acerca da humanidade sendo referencial as ideias que o filósofo Thomas Hobbes defendeu em seu Leviatã, e que partiam da hipótese de que o ser humano é naturalmente inclinado para o mal. Devido a essa característica, para Hobbes faz-se necessária a intervenção de leis rígidas para que o ser humano consiga sair de seu estado natural e adentre no estado civil.

De acordo com Rutger Bregman (2021), essa hipótese poderia ser denominada de “teoria do verniz”[1] o que implica dizer que as leis socialmente compartilhadas e estipuladas por alguma instância de poder – como por exemplo o Estado – serviriam como um mecanismo de controle da nossa tendência à maldade, à traição e diversas atitudes condenáveis. Mas esses mecanismos de contenção formariam uma camada de verniz fina que com certa facilidade pode ser descascada, trazendo à cena nossa “verdadeira natureza”.

O ambiente futebolístico é um daqueles em que essa camada de verniz se mostra por vezes frágil. Assim, como outros ambientes de trabalho, o mundo do futebol espetáculo está longe de ser um lugar acolhedor. A competitividade é grande e os interesses financeiros pautam grande parte das ações. A vaidade é imensa e as emoções são exaltadas, o que, frequentemente, deriva em variadas manifestações de violência. Em quais outros ambientes de trabalho, os profissionais são alvo de agressões verbais constantes no momento mesmo em que desempenham suas funções? E tudo isso ocorre de modo explícito e, muitas vezes, legitimado, por seus próprios colegas. E legitimado por nós torcedores.

No futebol, podemos ouvir afirmativas do tipo “a arbitragem roubou o jogo”, “tal jogador é limitado e não tem condições de vestir tal camisa”, “esse técnico é um burro” ou “esse técnico precisa ser demitido”. Frases desse tipo são ditas pela torcida, mas também por jornalistas que expressam sua opinião em veículos de comunicação massivos.  E isso tudo é feito tendo como motivação, muitas vezes, emoções de momento que perdem a força com o tempo, mas podem deixar de herança estragos em carreiras ou mesmo na vida psíquica de alguém.

Esse ambiente hostil poderia ser diferente?

A série Ted Lasso[2] nos faz refletir sobre essa possibilidade.

Ted Lasso
Foto: Divulgação.

Nos últimos cinco anos, são diversas as produções seriadas – documentais ou ficcionais – que têm o esporte como tema. Nessa listagem grande e variada, Ted Lasso se destaca pelo humor simples e porque de modo despretensioso nos mostra que a convivência humana pode ser boa, mesmo em meio a um mundo tão competitivo no qual somos estimulados a desconfiar do outro, a menosprezá-lo e, frequentemente, tratá-lo como potencial inimigo.

Ted Lasso nos faz pensar sobre a possibilidade de um “novo realismo”, proposta trazida por Rutger Bregman em seu instigante livro Humanidade. Uma história otimista do homem.

Quem já não foi taxado de romântico ou mesmo iludido pelo simples fato de ter demonstrado algum tipo de fé na humanidade? Quantas vezes já não ouvimos – ou mesmo falamos – que na vida é preciso ter sempre cuidado, afinal somos cercados por pessoas que estão prontas para nos apunhalarem pelas costas.  Geralmente essas afirmações são proferidas com profundo orgulho de quem se considera não uma pessoa pessimista, mas sim realista.

É absolutamente interessante o sentido que a palavra realismo adquiriu em nosso cotidiano. Ser realista significa basicamente compreender a natureza humana como essencialmente ruim. Bregman se pergunta: Por que não pensar o contrário? Por que ser realista implica olhar o mundo e as pessoas a partir de um viés negativo? O que chamamos de realismo, portanto, é uma interpretação possível, enviesada, e que está longe de corresponder a alguma verdade a respeito da nossa existência.

É verdade que não faltam exemplos do poder destrutivo que carregamos em nós mesmos. Guerras, violências cotidianas, a fome, a escravidão enfim, o “o horror, o horror” como gritou o personagem Kurts de Coração das trevas de Conrad, é uma das marca a breve história da espécie humana na terra.

Mas poderíamos listar evidências da nossa capacidade de ajudar quem precisa, de promovermos lutas pelo bem-estar coletivo, na possibilidade de sentirmos alegria no simples ato de olhar o dia nascendo e na nossa capacidade de inventarmos modos de estamos juntos.

O futebol, aliás, é uma dessas invenções.

Rutger Bregman propõe que deveríamos construir um “novo realismo”, a partir de uma visão mais otimista sobre a humanidade. Exemplos não faltariam – e o autor elenca alguns – bastaria uma mudança de perspectiva em relação a narrativa construída acerca da nossa história.

O seriado Ted Lasso nos faz imaginar a viabilidade desse novo realismo.

Ted Lasso: um olhar otimista, mas não ingênuo

O personagem que dá nome a série nasceu, em 2013, de um comercial feito para promover a transmissão do campeonato inglês pela emissora americana NBC. Na campanha, o ator Jason Sudeikis interpreta um técnico de futebol americano que vai treinar o Richmond FC., um time da Premier League. O objetivo era brincar com características do futebol que provocam estranhamento no público americano como, por exemplo, o fato de o jogo terminar sem necessariamente ter um vencedor.

Em 2020, Ted Lasso – também interpretado por Jason Sudeikis – se transformou em protagonista de seriado homônimo. O mote da história é o mesmo da propaganda, o que representa um desafio e tanto, afinal não é nada fácil justificar a contratação de um técnico de futebol americano por um clube que disputa a Premier League, uma das mais importantes competições daquele futebol inventado pelos ingleses. 

A solução narrativa encontrada soa como um tanto exagerada e um tanto melodramática ao recorrer a um tópos muito comum da ficção: a vingança. Mas nada é tão simples assim quando se trata da série Ted Lasso.

Ted Lasso chega a Premiere League para treinar o modesto Richmond. Sua contratação foi parte dos planos da personagem Rebecca Welton que se tornou proprietária do clube como resultado da divisão de bens após um processo de divórcio. Por ter sido abandonada pelo marido que a troca por uma mulher mais jovem e publicamente sentir-se humilhada, Rebecca resolve vingar-se do ex-marido – e ex-dono do Richmond -, destruindo aquilo que ele mais amava. Para isso chama Ted Lasso, um treinador de futebol americano que havia ficado famoso após protagonizar a comemoração de uma vitória de seu time, com uma engraçada dança que viralizou na internet.

Você poderia pensar que dificilmente esse tipo de contratação seria possível, afinal de contas o futebol é um negócio e tratá-lo a partir de motivações pessoais, somente traria prejuízos financeiros. Mas prejuízo para quem? Rebecca Welton é milionária e sua fortuna não seria comprometida caso o Richmond, por exemplo, deixasse de existir. O mesmo poderíamos pensar em relação aos irmãos Avram e Joel Glazer que se tornaram proprietários do Manchester United ao herdarem o clube do pai, Malcom Glazer, falecido em 2014. A família Glazer deixaria de ser bilionária caso o Manchester United fechasse as portas?

O enredo de Ted Lasso, portanto, está longe de parecer impossível e até mesmo soa como uma provocação ao contexto esportivo contemporâneo. Afinal, a partir do momento em que um clube de futebol se torna propriedade de uma pessoa, são grandes os riscos dele ficar à mercê dos mandos e desmandos de seu dono ou sua dona. Os movimentos de resistência torcedora ao redor do mundo dão mostras do quanto torcedores sabem desse risco.

Sendo assim, com plenos poderes, Rebecca poderia fazer o que bem entendesse do Richmond, o que inclui insistir em seu plano de vingança. Mas Ted Lasso não um é seriado que reitera lugares comuns e nem os estereótipos da mulher abandonada e ressentida. Rebeca com o tempo se revela uma personagem complexa que vai ocupando seu espaço de protagonismo na série e no clube Richmond.

As mulheres mandam, mas quem joga são os homens e alguns chamam mais atenção fora do que dentro de campo como é o caso de Jamie Tartt. Habilidoso, vaidoso, arrogante, mulherengo e indisciplinado, o personagem é uma alusão – pouco disfarçada – a Cristiano Ronaldo e tantos outros jogadores-celebridade, figuras tão comuns no cenário atual do futebol. Como contraponto a Jamie, há o capitão Roy Kent. Dedicado aos treinamentos e aos jogos, Roy carrega um semblante austero e um temperamento forte, sendo temido e ao mesmo tempo respeitado pelos colegas. Mas esse protótipo de macheza frequenta um fã clube de novelas às escondidas, o que o ajuda a lidar com a necessidade de dar fim à carreira de jogador devido a problemas físicos.

E Ted Lasso?

Dono de uma simpatia que às vezes o torna inconveniente, o técnico é um homem atrapalhado, que não entende absolutamente nada de futebol inglês e que, antes de tudo, opta por tentar viver em harmonia com as pessoas, mesmo tendo motivos para agir de modo oposto. Quando Ted chega à Inglaterra é recebido com severas críticas da imprensa e xingamentos da torcida. Os jogadores o tratam com desprezo ou deboche, fazendo dele um motivo constante de piada. Mas para espanto de todos, mesmo sendo maltratado Ted Lasso não revida com a mesma moeda. E tampouco oferece a outra face. O treinador tem plena consciência do tipo de tratamento que recebe, mas com o tempo sua relação com os profissionais do clube, com os atletas vai se modificando e transformando-se em amizade, como é o caso de Rebeca.

Pode parecer que estamos caminhando para mais uma história melodramática de redenção em que a mensagem principal a ser passada aos espectadores é a de que a vida é bela e que os conflitos, preconceitos e várias mazelas da vida são vencidos em prol do amor e da amizade. Mas não é bem assim que a série conduz sua narrativa. Embora o clube torne seu ambiente menos hostil, em grande medida, por causa da interferência da figura de Ted Lasso, o Richmond luta a duras penas para se manter na primeira divisão inglesa. As derrotas continuam a gerar preocupação e irritação na torcida, assim como continuam constantes os desafios de integrar, em um mesmo grupo, jogadores com histórias de vida e interesses tão díspares. Jogadores muitos dos quais vindos de fora da Inglaterra e alvos constantes de preconceito.

A série não oferece uma varinha de condão mágica capaz de mudar a realidade e nos fazer sentir algum tipo de catarse redentora ao final de cada episódio. Camaradagem não é um atributo que possamos entender como algo que seja natural ao personagem Ted Lasso. O comportamento de Ted é derivado de uma luta constante consigo mesmo, uma luta metaforizada no trabalho de preparar biscoitos para oferecer de cortesia aos colegas todas as manhãs.

Em Ted Lasso é evidente que o mundo está longe de ser perfeito, mas também está longe de ser uma ruína. Como já foi dito, o seriado Ted Lasso nos faz ver a viabilidade daquele “novo realismo” proposto por Rutger Bregman. E nesse sentido, não importa tanto descobrir se os seres humanos são essencialmente bons ou ruins.

Ted Lasso não nos dá essa resposta. A série apenas demonstra que é absolutamente possível construirmos formas de vidas comprometidas com a empatia. Esse compromisso não nos livrará da raiva ou das dores trazidas pela perda de um ente querido ou pela derrota de nossos clubes de coração. Esse compromisso não nos livrará do enfrentamento diário com nossos medos e traumas. Mas pode nos oferecer a oportunidade de entender que agir com empatia, solidariedade e optar pela alegria da coletividade também são ações absolutamente reais, verificáveis ao nosso redor e não somente ilusões.

Ted Lasso
Ted Lasso. Ilustração: Rafael Garcia Giglio

 

Talvez nesse aspecto resida parte dos motivos do sucesso de Ted Lasso junto ao público. Lançado na época da pandemia mundial de Covid, a série se transformou em um sucesso de público e de crítica especializada, chegando a ganhar o  Emmy, em 2021 e 2022, de melhor série de comédia.

Em sites especializados e em resenhas críticas publicadas em jornais é comum lermos que uma das justificativas para o êxito de Ted Lasso é que a série nos trouxe leveza e humor em um momento tão delicado como foi o período pandêmico. O “novo realismo” de Ted Lasso fez sucesso.

Em sua terceira temporada, já lançada na metade do mês de março de 2023, a perspectiva positiva sobre a humanidade será colocada à prova, afinal a tomar pelo fim da 2ª temporada, estará em campo e fora dele, a inveja, a cobiça e a ingratidão.

Ted Lasso é uma série que nos faz refletir sobre profundas questões da nossa vida e o faz tendo o futebol como cenário e metáfora das nossas derrotas e vitórias diárias, sabendo sempre que amanhã o jogo continua.

Referências

BREGMAN, Rutger. Humanidade. Uma história otimista do homem. São Paulo: Planeta, 2021

LEVER, Janet. A loucura do futebol. Trad. A. B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, 1983.


[1] Bregman afirma que a “teoria do verniz” foi assim denominada pelo biólogo holandês Frans de Waal (p.21)

[2] Ted Lasso é uma série estadunidense original da Apple TV, criada em 2020 por Bill Lawrence e Jason Sudeikis.

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. O novo realismo de Ted Lasso. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 10, 2023.
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