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Quando a vida vai se tornando um rosário de perdas (futebol) II

Waldir Peres

Meu pai tinha um primo fanático por futebol, em especial pelo seu time de coração, o São Paulo Futebol Clube. Era dos que chegavam ao Morumbi, a cada domingo, quatro ou cinco horas antes do início da partida. Vivíamos a segunda metade dos anos 1970 e ele jogava conosco futebol de botão, atuando com um dos times vermelhos, esfinges dos são-paulinos sobre cada um dos discos impulsionados pela palheta. Terto, Forlán, Toninho Guerreiro, Muricy, Pedro Rocha, Serginho, eram eles que povoavam a imaginação dos meninos em volta da mesa feita campo de jogo. No gol, em caixinha de fósforos repleta de arroz e chumbo e decorada com as três cores do clube (vermelho, branco, preto), Waldir Peres.

Ilustração: Francisco Carlos S. da Silva.

O primo era fã de Waldir, meu pai também o admirava, achava graça na catimba, principalmente nas cobranças de pênalti, na contumaz tentativa de desestabilizar o cobrador. Foi assim com Paul Breitner em 1981, em amistoso entre brasileiros e alemães em Stuttgart, ocasião em que o campeão de 1974 perdeu duas cobranças seguidas, e igualmente na final do Campeonato Brasileiro de 1977, disputada em março do ano seguinte, quando o Tricolor venceu o Galo na disputa de pênaltis. O placar não saíra do zero, já que o Atlético Mineiro sucumbira à marcação pesada e violenta do São Paulo, em um Mineirão de gramado encharcado que ajudou a bloquear Toninho Cerezo, Paulo Isidoro e Marcelo Oliveira.

Naquele mesmo 1978 Waldir comporia o elenco que chegou ao terceiro lugar na Copa do Mundo disputada na Argentina, ficando na suplência de Leão e deixando o jovem Carlos, da Ponte Preta, como terceira opção. Quatro anos antes, na Alemanha Ocidental, fora ele o que ocupara tal posição, ficando Renato, do Flamengo, como reserva imediato. A condição de titular seria, afinal, alcançada em 1982, na Espanha, na mitificada equipe que caiu frente à seleção da Itália, no famoso Desastre do Sarriá. Nunca houve confiança em relação ao goleiro, e não falta quem lhe atribua o fracasso naquele mundial, ele que falhara contra a União Soviética, mas que não teve culpa nos três gols de Paolo Rossi.

Waldir morreu em 2017, o atacante italiano foi fazer-lhe companhia há poucos dias.

Paolo Rossi

Eu lia a revista Placar em 1980, com ela e seus bons artigos de new jornalism – de Juca Kfouri, José Maria de Aquino, Marcelo Resende (um ótimo repórter antes de se tornar apresentador de programas policiais) – eu aprendia algo sobre futebol, sociedade, sobre o que era um texto bem escrito. Foi pela Placar que soube do envolvimento de Paolo Rossi no Totonero, o escândalo de manipulação de resultados no futebol italiano. Um gancho de três anos o impediria de participar da Copa de 1982, mas a pena foi reduzida em um, deixando-o em condições de compor o time que seria campeão.

Ele teve uma carreira curta e intensa, com enorme destaque em dois mundiais, um título europeu, outros nacionais na Itália, jogando pela Juventus do polonês Zbigniew Boniek e do francês Michel Platini.

No fatídico jogo contra a seleção do Brasil, em 1982, Rossi, como se sabe, fez os três gols que eliminaram o time dirigido por Telê Santana. Falha de marcação no primeiro e no terceiro gols, passe temeroso de Toninho Cerezo no segundo, e de nada adiantaram os tentos de Sócrates e de Falcão naquele início de julho. O time italiano, que vinha se recuperando de péssima campanha na primeira fase, engrenou e venceu a Copa. Era uma equipe muito forte, destaque-se, formada por jogadores que atuavam na melhor liga do mundo e que quatro anos antes haviam perdido o terceiro lugar, na Argentina, em derrota frente aos brasileiros por apenas 2 a 1.

Paolo Rossi foi um atacante como poucos.

Alejandro Sabella

Em 2009 parecia improvável que o Cruzeiro perdesse a Copa Libertadores da América, depois de conseguir um empate com o Estudiantes, em La Plata, no primeiro jogo da final, e sair na frente no segundo, em Belo Horizonte. Ademais, o time da Raposa era superior aos Pincha Ratas, como o time platense é conhecido, em alusão a seu passado universitário, demarcado aqui pelos estudos de vivissecção. Mas, aconteceu. Liderados no campo por Juan Sebastián Verón e no banco por Alejandro Sabella os argentinos viraram o jogo e levaram o título sobre os mineiros, que tinham Kléber Gladiador no ataque e Adílson Batista no comando técnico. (Onde teriam chegado as boas carreiras desses dois últimos, uma vez vencidas a partida e o torneio, algo que se lhes escapou por tão pouco?).

Desde 2002 frequento a cidade de La Plata, e lá meus amigos falam de Sabella como um sujeito tranquilo, de vida simples, recolhido depois de chegar ao vice-campeonato mundial dirigindo a seleção argentina, em 2014. Bajo perfil, como se diz por lá. É o que se comenta também no Corinthians, onde esteve na comissão técnica de Daniel Passarela, em sua conturbada passagem pelo Timão, há quinze anos. Definiu-o bem o diário esportivo Olé, na última quarta-feira. O destaque é do jornal:

“Pachorra [Sabella] dejó una huella imborrable en el equipo de La Plata, pero no porque un ganó dos campeonatos como DT (nada menos que la Copa Libertadores 2009 y el Apertura 2010), sino porque hizo escuela. Les inculcó a sus jugadores una forma de afrontar la vida con el respeto a uno mismo y hacia el otro como puntal fundamental. En Estudiantes, la calidad humana no se negocia y Sabella fue un claro ejemplo.”

Bom sujeito, sabia ensinar e montar uma boa equipe.

O técnico da seleção Argentina, Alejandro Sabella durante entrevista coletiva no Maracanã na Copa de 2014. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

2020

Ao contrário de Waldir, Rossi e Sabella, este ano não vai deixar saudades. Aliás, já vai tarde.

Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Quando a vida vai se tornando um rosário de perdas (futebol) II. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 28, 2020.
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