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Recordações de Ronaldo, o Fenômeno: glórias, dores, mercado

Há quase sete anos, eu estava na Europa quando Ronaldo Nazário de Lima anunciou sua aposentadoria como jogador de futebol profissional. Houve comoção nacional e impacto na imprensa estrangeira. O italiano La Reppublica estampava uma das frases de despedida do ídolo: “Deixar [o futebol] é como morrer.” O inglês International Herald Tribune qualificou o adjetivo de “Fenômeno”, incorporado pela imprensa e pelo público desde que ele atuou pela Internazionale Milano, como algo que lhe coube tão bem quanto calçar uma chuteira. Não é possível comparar a retirada do famoso futebolista com a de outros astros da bola, como Pelé e Maradona, certamente maiores que ele. Mas, Ronaldo foi o primeiro dos superstars do futebol a encerrar uma carreira inteiramente desenvolvida sob holofotes e produzida por meios de comunicação de massa. Sua história se confunde não apenas com as enormes possibilidades imagéticas da televisão, mas também e principalmente da pela internet. Na rede mundial de computadores toda sua trajetória está fartamente documentada.

Presente em campo em duas finais de Copa de Mundo (e em outra, com dezessete anos, como reserva), em 1998 Ronaldo foi o anti-herói a ver seu amigo Zinedine Zidane, que declarou ter sido o brasileiro o melhor de sua geração, brilhar no Stade de France, nas cercanias de Paris. Em 2002 foi o grande destaque do título conquistado pela seleção brasileira no Japão e na Coréia do Sul com dois gols na final contra a Alemanha e a artilharia do torneio. Mas, não foi apenas nos grandes estádios do mundo que Ronaldo brilhou. Também em Florianópolis, onde vivo, por duas vezes Ronaldo jogou no pequeno estádio Aderbal Ramos da Silva, do Avaí Futebol Clube, de Florianópolis. Na primeira delas, em 1994, marcou seu primeiro gol pela seleção brasileira, em amistoso preparatório para o Mundial daquele ano, contra a fraquíssima equipe da Islândia. Já no final da carreira, cumprindo um último (e milionário) contrato com o Corinthians Paulista, voltou à Ressacada, como o estádio é conhecido, para, em partida com atuação bastante discreta, ser derrotado pelo time anfitrião. Antes do jogo deixou, junto com o ídolo local Marquinhos – este agora prestes a pendurar as chuteiras –, a marca de seus pés na calçada da fama avaiana.

Como corintiano, admirei o craque em sua estreia no Paulistão de 2009, quando fez um improvável gol de cabeça contra o arquirrival Palmeiras, mas também, na incrível arrancada contra a zaga do São Paulo na semifinal, e no golaço contra o Santos, na final. O Fenômeno deixou na saudade o lateral-esquerdo Triguinho para logo encobrir impiedosamente o goleiro Fábio Costa. Lembro-me dos zagueiros santistas dizendo que tentariam enervá-lo para que tomasse o terceiro cartão amarelo na primeira partida final, de modo a ser suspenso para o último jogo. Será que não conheciam Ronaldo e sua frieza letal? Servido por Elias, em grande fase, e fazendo dupla de ataque com Dentinho, ao título do Paulista somou-se o da Copa do Brasil daquele ano.

Ronaldo foi, antes de tudo, protagonista de sua autoimagem, o atleta globalizado fiel como ninguém aos patrocinadores, produtor incessante de notícias sobre si, naquele que é um dos casos de marketing esportivo mais bem-sucedidos de todos os tempos. Nem mesmo as peripécias na vida pessoal, muito divulgadas, como convém às celebridades, os longos períodos de recuperação, ou ainda o notório excesso de peso dos últimos anos, foram capazes de diminuir a capacidade de geração de lucro pela imagem e pela performance do ídolo. Globalizado, visitando o Kosovo durante a guerra ou procurando governar o trânsito de sua identidade étnica, ao declarar-se branco, o jogador foi, e seguiu sendo, um portentoso agente do negócio futebolístico, como ficava claro na emotiva entrevista de despedida. Corinthians, Copa do Mundo, TV Globo, equipe nos Estados Unidos, presença aqui e acolá, Ronaldo confirmou as expectativas ao longo desses anos.

Ronaldo comemora pelo Corinthians na decisão da vaga pelas oitavas de final da Copa do Brasil 2009;
Foto: © Daniel Augusto Jr./Ag. Corinthians.

É claro que tudo isso se associa a um desempenho impressionante em uma carreira esportiva de enorme sucesso, ou o espetáculo midiático seria apenas farsa a durar pouco, o que não foi o caso. Além disso, a recuperação física de duas lesões que lhe custaram anos de tratamento e a desconfiança de que jamais voltaria a ser o mesmo incrementaram o imaginário em torno do idolatrado futebolista. Como mostrava uma propaganda do governo anos antes de sua retirada, Ronaldo, como brasileiro, “não desiste nunca”.

Mas, de fato, ele não voltou a ser o mesmo depois das lesões. Se a capacidade de finalização, a incrível visão de jogo e inteligência cinestésica seguiram as mesmas, sua rapidez contra os zagueiros adversários tornou-se com o tempo cada vez mais escassa. Perguntado certa vez sobre do que mais sentia saudades, não hesitou em dizer que era de sua velocidade. Tampouco perseverou muito além dos limites da teimosia, vencido, como acontecera com o tenista Gustavo Kuerten, pelas dores e limites do corpo. Ronaldo já havia reconhecido publicamente algo que todos os atletas de alto rendimento sabem, mas pouco comentam, que o esporte de alta competitividade nada ter a ver com saúde. Por isso tampouco, causa tanta estranheza que seja ele, como muitos outros atletas, fumante. Para além das questões financeiras, é de gozo que se trata a questão, não de preservação da saúde. “A grandeza do esporte começa onde ele deixa de ser saudável”, escreveu Bertold Brecht.

Ronaldo personifica a ideia de que a preparação para o alto rendimento esportivo é uma constante luta contra o corpo e seus limites, ou ainda, para além deles. O seu, em especial, depois de transformado drasticamente ao longo da carreira, é testemunha desse acostumar-se à dor e ao sofrimento. Friedrich Nietzsche escreveu que problemática não é a dor, mas quando ela não tem sentido. A dar crédito ao filósofo, então Ronaldo não tem do que se queixar. De fato, não se ouviu arrependimento naquela sua despedida, mas apenas lamento de que já não era mais possível suportar as seguidas contusões.  “Perdi para o meu corpo”, afirmou, sintomaticamente, como se ambos, ele, de um lado, e suas carnes, ossos e vísceras, de outro, fossem duas entidades distintas.

Tampouco nós podemos nos queixar. Admirar o grande jogador em seus momentos de precisão, mesmo sem esquecer o que ele significa como expressão da implacável sociedade de mercado, nos torna mais humanos, menos utilitários. Como lembra Hans Ulrich Gumbrecht, em seu Elogio da beleza atlética, desfrutar do esporte é mergulhar em um gozo estético que nos gratifica os sentidos. “Eu sou Ronaldo. Muito prazer em conhecer, eu sou o fenômeno Ronaldo Nazário dos Campos. Quero agradecer a Deus por ter me escolhido no meio de tantos. Igual a todo brasileiro, eu sou guerreiro, às vezes eu caio, mas eu me levanto”, diz a canção do rapper Marcelo D2. Não há como dela discordar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Recordações de Ronaldo, o Fenômeno: glórias, dores, mercado. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 9, 2017.
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