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Sócrates – vida que não coube nos anos vividos

Em 1977 um jovem de 23 anos aparecia sorridente na foto com amigos que compareceram à sua formatura no curso de medicina da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. Até aí, nada de mais, não fosse o fato de que na beca entreaberta do formando se via a faixa de campeão da Taça Cidade de São Paulo, torneio correspondente ao primeiro turno do Paulistão daquele ano. Era Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, então jogador de futebol do Botafogo Futebol Clube, tradicional agremiação da mesma cidade em que a USP tem uma sede.

Conta-se que o talentoso atacante às vezes saía diretamente do plantão hospitalar para o campo de jogo, e que chegou até mesmo a entrar no Pacaembu por um portão da torcida, pular o alambrado e incorporar-se ao time para uma partida na capital paulista, vindo de um compromisso estudantil. Aliás, as histórias sobre Sócrates são muitas, ele que foi um cidadão que viveu intensamente seus 57 anos e que nunca teve medo ou vergonha do próprio desejo. Amores diversos, posições radicais e iconoclastas, amizades sinceras, gols em bom número, jogadas magistrais em profusão, tudo isso combinado com a participação em uma das melhores seleções nacionais já existentes, a que representou o Brasil em 1982.

Mas houve mais. No Corinthians, para o qual se transferiu em 1978, foi campeão paulista três vezes. Na primeira, no ano seguinte à chegada ao Parque São Jorge, fez dupla de ataque com Palhinha, e foram deles os dois gols da partida final contra a Ponte Preta; na segunda, em 1982, o par era com o jovem Walter Casagrande Jr., seu grande amigo, autor do último tento no 3×1 contra o São Paulo; na derradeira, em 1983, outra vez com Casão na frente, a bola decisiva foi novamente de Sócrates, em empate contra o mesmo adversário do ano anterior. Poucos meses depois, a ótima campanha no Brasileiro, em que o Timão chegou às semifinais, foi, no entanto, insuficiente para que o craque não se transferisse do clube e do país. Ele assegurara que se a emenda constitucional Dante de Oliveira, que reinstituía eleições diretas para presidente da República, fosse aprovada no Congresso, ele permaneceria no Brasil. A promessa foi feita no palanque do grande comício pelas Diretas, no Vale do Anhangabaú, em 16 de abril de 1984. Ao mesmo tempo, vestia tornozeleiras amarelas, a cor da campanha, durante as partidas. O malogro da esperançosa empreitada levou-o a aceitar o convite para defender a Fiorentina.

Diretas Sócrates
Sócrates discursa para milhares de pessoas no vale do Anhangabaú. Fonte: Reprodução TV Globo

Mas houve ainda mais. No duro jogo contra o Tricolor, no último título de Sócrates, em 1983, o time entrou com uma faixa em que se lia “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. Eram os anos da Democracia Corinthiana, que à época acompanhei como criança leitora da Placar(que eu ganhava toda semana) do Estadão (o jornal que chegava à casa de meus pais, em Florianópolis) e da Folha de São Paulo (o matutino entregue para os avós paternos, no Brooklin Paulista). O movimento tinha a simpatia e o apoio da primeira, cujo editor era Juca Kfouri, mas nem tanto do último, e quase nunca do conservador jornal da família Mesquita. Deixando a infância para trás, admirando Sócrates, Casagrande, Wladimir e Zenon (que conhecíamos por ser catarinense e ter se destacado no Avaí, antes de liderar o Guarani no título brasileiro de 1978), o futebol foi uma experiência de politização nos estertores da ditadura – esta noite cujas sombras parece que nunca nos deixam.

Quando chegou ao Corinthians, Sócrates não comemorava os gols que marcava. Dizia que eram ato correspondente ao trabalho realizado, nada mais. Mesmo na seleção brasileira a celebração não acontecia. Lembro-me do pênalti cobrado contra o selecionado uruguaio, na derrota por 2 x 1 na final do Mundialito 80, em Montevidéu. Rodolfo Rodríguez, o arqueiro que se destacou na Celeste e em equipes nacionais, mas também no Brasil, tentou desestabilizá-lo com todo tipo de catimba, inutilmente. Com frieza e técnica, o tento foi marcado e, como de praxe, não festejado. Isso mudou ao longo dos anos, ainda que não muito.

O gol do bicampeonato paulista da Democracia Corinthiana contra o São Paulo, em 1983, aos 46 minutos do segundo tempo, foi muito comemorado por ele, companheiros e a fiel torcida que dividia o Morumbi com os tricolores. Foi uma finalização calma, que nas imagens parece fácil, um chute bem colocado depois do passe de calcanhar – esta que era uma marca do Doutor – de Zenon. Talvez não tenha mesmo sido difícil para aquele que, segundo a narração de Osmar Santos, era “o espetáculo dentro do espetáculo, a arte dentro da própria arte”. Logo após o apito final, instado a declarar algo como o melhor jogador da partida, não titubeou: “O Corinthians provou que a liberdade dá melhores condições de trabalho”. Logo depois, ao ser perguntado sobre o que sentia em momento tão singular, respondeu que “nada, nada especial”.

Esse foi Sócrates, que desfrutou da vida, que sofreu por amor e teve saudades do Brasil quando viveu na Itália.  Tendo sido artista antes que atleta, não durou muito como jogador de futebol.  Tampouco sua vida teve muitos anos, apenas 57. A brevidade foi um preço alto demais para tanta intensidade? É possível, mas não é o caso de fazer julgamentos, muito menos de ordem moral. Vestiu com glória a camisa do time do povo, foi amigo de seus amigos, lutou pela democracia. Foram muitas vidas vividas em uma só. Ele, que teria chegado aos 70 anos na última segunda-feira, 19 de fevereiro, faz muita falta.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Sócrates – vida que não coube nos anos vividos. Ludopédio, São Paulo, v. 176, n. 24, 2024.
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