177.3

Vitor Rocha: meio pessoa, meio produto, futebol por inteiro

“O futebol, pra mim, é minha vida”.

Um ruído de automóvel ao fundo me traz de volta ao tempo presente, depois de me sentir afetada por essa fala. É assim que termina a entrevista com Vitor Rocha, um dos 8 jogadores-cineastas que me acompanha na jornada de minha pesquisa.

Repito.

“O futebol, pra mim, é minha vida”.

Quando ouço a seriedade e o peso que compõe falas como essa, esqueço da pouca idade que têm todos esses meninos, que insisto em chamar de meninos para fazer lembrar que ainda são, ou, que não são só futebol. Mas é preciso dizer que também são, por vezes, só futebol. O “só” que precede futebol na frase não diz de um só que significa apenas. É um só futebol que é tanto e é tudo, que diz de uma vida.

Uma vida inteira de futebol.

Com uma clareza que cabe em 20 anos vividos, Vitor diz:

“Minha prioridade vai ser essa, e tudo o que for ruído, que vai me distrair de chegar no meu objetivo, isso aí eu não vou dar bola”.

Ainda assim, os ruídos existem e se mesclam as falas ponderadas de Vitor, como se o chamassem para uma vida-outra. E há tanta possibilidade de vida, fora e dentro. Mas não há tempo a perder. Essa coisa do tempo que aparece entrevista após entrevista, parece forçar o fazer-pensar sobre dias, meses, anos, tempos cronológicos e não cronológicos. Um tempo-futebol, que não cabe no tempo que conhecemos. Um tempo que percebo como cisão.

Corte.

Corte do tempo da vida, corte do tempo do corpo, corte do tempo do pensamento.

Nesse tempo outro, no tempo-futebol, é outro Vitor quem habita. Ele explica:

“Eu já coloquei isso na minha cabeça, faço mentorias com gente que me ajuda nisso. Entendendo que eu sou um produto e que eles (torcida) estão ‘criticando’ não eu-Vitor, mas sim, eu-Produto […]. Eles tão julgando o produto-Vitor, não a pessoa-Vitor”.

Penso que talvez a pessoa-Vitor viva nesse lugar em que vivemos nós. Nós, os outros que não vivem o tempo-futebol e uma vida cortada em duas. Contudo, cabe a nós, os outros que não vivem o tempo-futebol e uma vida cortada em duas, o trabalho do pensamento, e do entendimento de como não ser conivente com o processo de corte, de cisão, que resulta no produto.

Arrisco dizer que é por se perceberem no território existencial de produto que chegamos a esse lugar, de ser uma tarefa a de encontrar jogadores que sejam admiráveis numa vida extra-campo. Cada semana que passa uma nova decepção com os que foram nossos ídolos, envolvidos em escândalos que fazem doer o coração que admira e torce.

Marquei na pele a imagem de Sócrates Brasileiro para nunca esquecer do que o futebol pode. Da potência de um futebol que deixa viver os eus que vivem dele. Mas não dá para morar na lembrança, é urgente pensar o que há no agora. Para isso precisamos investigar o processo, olhar de perto, de dentro, de fora. Nos questionar sobre como estamos construindo a formação de jovens-jogadores, ou melhor dizendo, de jovens-produto.

***

São diversos os mecanismos de captura subjetiva do tempo-futebol. Existe um em específico que me fez querer parar o tempo para esmiuçá-lo: o elemento de federação.

Já tinha ouvido falar do “BID” (Boletim Informativo Diário) antes, porém, demorei a entender a complexidade que o “sair no BID” tem.

Explico.

O BID é uma ferramenta da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), que inscreve o jogador na situação de federado. Assim, o atleta passa a integrar oficialmente o quadro de trabalhador em determinado clube federado à CBF, podendo disputar jogos e campeonatos de maneira regular, diante da instituição máxima do futebol brasileiro.

“Federação é pra tu entrar no BID. Pra jogar um campeonato federado tu tem que entrar no BID, ser certificado pela CBF que tu tá dentro de um clube e aí vai poder jogar, senão você não pode jogar. […] Eu fui me federar com 17 pra 18 anos, mas normalmente a gurizada começa antes. Eu fui jogar um campeonato federado relativamente tarde”.

 

Mas tarde em relação ao quê? Ao tempo da vida? Não. Tarde no tempo-futebol. O BID é, na verdade, uma espécie de atestado de nascimento no universo futebolístico. É uma inscrição em outro tempo, em outra vida. E é nessa vida que o eu-pessoa e o eu-produto se cindem de vez, de forma regulamentada, institucionalizada.

O corpo é cortado em dois, assim é com o tempo e com a vida. Entendo agora a preocupação de Léo Zonta com o tempo útil do corpo. Nessa lógica temporal, Vitor tem 20 anos no tempo de pessoa e 3 anos no tempo-futebol, no corpo de produto.

Penso no pensamento. Demora mais para o pensamento maturar. Tem coisa que só chega com o tempo de uma vida vivida. E nesse tempo-futebol, os meninos ainda são crianças, descobrindo tudo o que há para descobrir nas linhas que demarcam o campo e que cindem com a vida do eu-pessoa.

Será por isso que Tite se posicionou de forma “miúda e minúscula”, como disse Milly Lacombe? Porque é gente pequena ainda para lidar com a realidade da vida fora dos gramados…? Improvável que um dia gente como ele será grande, não importa o tempo que passe se o tempo passar na lógica do tempo-futebol. Improvável que gente como ele saberá dizer da dor de uma mulher, porque no seu tempo, no seu espaço, não há mulher. Não há nada além do ego de um homem. O que existe é essa incessante vontade de ser menino irresponsável. Coisa que Vitor não é, mesmo quando habita nesse meio, meio-pessoa, meio-produto, futebol por inteiro.

***

Na canção Tempo rei, Gilberto Gil diz:

“Água mole

Pedra dura

Tanto bate

Que não restará

Nem pensamento”

Mas resta. Resta como réstia que faz ver, que faz pensar sobre o pensamento. Mas parece chegar junto dos “nãos”, que na vida de Vitor foram muitos. Me contou sobre o período de teste que fez em um clube, no qual aguardava um sim. Passou duas semanas em uma pousada esperando o tempo passar para que o sim chegasse. Longe da família, sozinho…

“Eu chegava na pousada e a cabeça? Sozinho num quarto… Uma, duas semanas, pareceu que eu tava ali um mês. E aí quando acabou e ele falou aquilo ali, eu… Quando liguei pra minha mãe falei ‘Ah, não sei se eu vou conseguir tentar de novo”

O ruído de um automóvel passando na rua acompanha o final da frase.

“Eu voltei de São Paulo sem esperança de voltar de novo. Foi um baque pra mim, porque eu tava muito bem fisicamente e mentalmente, e ali foi…”

Bate uma mão em diagonal em cima da outra para demarcar o corte.

“Do céu ao inferno”

Vitor parece ter feito essa viagem muitas vezes. Idas e voltas, do céu ao inferno, fora e dentro. Mas não há tempo a perder no tempo-futebol, não podia se demorar no pensamento ou na lamentação. Ainda não tinha terminado, mesmo depois do fim, ou do que achava que seria o fim posterior ao não.

Não muito tempo depois surgiu outra oportunidade. Contudo, foi atingido pelo mesmo discurso que Léo Zonta:

“(o treinador) Falou que faltava competitividade em mim. Quando ele falou que faltava competitividade, ali eu falei ‘como que vai faltar competitividade?’. Só de tu tá saindo da tua casa e indo buscar teu sonho ali tu já ta mostrando que tu não tá pra brincadeira. Aí tu chega no treino e o cara fala que falta competitividade? Baque atrás de baque. Quase 18 anos… Da onde tu tira força pra dizer ‘vou continuar, vai dar certo?’. As vezes tu tem que ser realista. Tô com 18 anos, não tá dando lá, não tá dando aqui, tá apertando a idade”

As oportunidades continuaram aparecendo e continuam, mesmo com a idade apertando, mesmo com baque atrás de baque. Vitor continua. Continua na vida dividido em dois, metade-pessoa, metade-produto, mas sem dúvida nenhuma, Vitor continua inteiro futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MORO, Eduarda. Vitor Rocha: meio pessoa, meio produto, futebol por inteiro. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 3, 2024.
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