Ao revisitar alguns textos que recentemente trataram de convocar o filósofo e sociólogo – entre outras atribuições – Karl Marx para discutir o futebol das primeiras décadas deste milênio, algumas novas provocações surgem e alimentam nossos pensamentos de como seria a relação deste jornalista, teórico político e – principalmente – revolucionário socialista com o esporte mais popular do planeta em tempos atuais. Como Marx reagiria à Lei Bosman de meados da década de 1990 e, agora, à nova decisão da Corte Europeia que dá liberdade aos clubes de se auto-organizarem em ligas e competições fora da Fifa e da Uefa? Quem seriam os representantes da burguesia e do proletariado neste circuito da Futebolização (KOCH 2020) para ele? E, finalmente, fosse Marx um aficionado em futebol, de que clube ele seria torcedor, ou de quais atletas e personalidades ele seria seguidor? Antes de adentrarmos nestes questionamentos, são importantes algumas contextualizações e vale relembrar de como Marx foi utilizado em alguns trabalhos acadêmicos nos últimos anos. Destaco que “[…] foi a pergunta ‘por que’, e não ‘o que’ nem ‘como’ que a teoria da sociedade de Marx postulou como fundamental para a compreensão histórica” (BAUMAN 2022, p.88) e que “Para compreender uma época, devemos descobrir o tipo de produção específico dela: como as pessoas produziam a vida” (BAUMAN 2022, p.89).
Karl Marx nasceu em Trier (Renânia-Palatinado, Alemanha/Prússia) em 1818 e faleceu em Londres em 1883. Estudou Direito e Filosofia nas universidades de Bonn e Berlim; casou-se com a crítica de teatro e ativista política alemã Jenny von Westphalen; e por conta de suas posições e publicações políticas, Marx teve de viver no exílio com a sua mulher e filhos na capital britânica durante décadas, onde continuou a desenvolver o seu pensamento em colaboração com o pensador alemão Friedrich Engels e a publicar os seus escritos. Os seus títulos mais conhecidos são o Manifesto Comunista e os três volumes de O Capital. As teorias de Marx sobre sociedade, economia e política, sustentam que as sociedades humanas – a partir da Modernidade, segundo ele, dividida entre a burguesia e o proletariado – se desenvolvem através das lutas de classes. Portanto, Marx não teve grandes oportunidades de ter contato com o futebol e possivelmente não as teve, pois naquele momento o esporte ainda estava em estágio embrionário nas public schools inglesas e teria, inicialmente, um viés pedagógico e disciplinador, ou seja, longe do contexto do entretenimento espetacularizado e mercantilizado da contemporaneidade. Também é importante destacar que a configuração geopolítica europeia nos anos 1800 era bastante diferente do cenário que encontramos no século XXI. Parte deste contexto histórico é possível observar na minissérie The English Game (disponível na plataforma Netflix), que conta a história do talentoso operário Fergus Suter que muda o mundo elitizado do futebol da Inglaterra do século XIX. Em meio a crises sociais e assolado pela desigualdade, Fergus luta para reivindicar seu lugar no esporte e, se torna também uma mercadoria desejada.
Perina (2021), ao trazer Marx para o debate da violência no futebol, alertou que ao aplicar a teoria das classes sociais ao futebol implica situar os torcedores e jogadores como as classes dominadas; e os dirigentes, empresários e autoridades estatais como as classes dominantes. Matias (2018), em sua tese de doutorado, se reporta à forma espetacularizada do futebol e não do espetáculo em si ou mesmo do futebol de alto rendimento. Para o pesquisador, o futebol de espetáculo é uma mercadoria especial permeada pela presença dos veículos de comunicação (sobretudo pela televisão), grandes grupos econômicos e financeiros, com um público consumidor e atletas vistos como mercadorias. Matias (2018) procura desvelar o que está sendo o futebol espetacularizado no contexto do capitalismo tardio: com alguns clubes e ligas globais cobiçados por grandes grupos econômicos, acompanhados por bilhões de pessoas em todo o planeta, produtor de força de trabalho do atleta e de espetáculos, capaz de produzir “mais-valia” e, também, de ser um “palco” de valorização e de fonte de criação de outros produtos. Por fim, para citar mais um trabalho, Araújo e Giglio (2021) se propõem a analisar, a partir do primeiro volume de O Capital, a questão da mercadoria no futebol, mais especificamente do jogador como mercadoria. Isso foi feito partindo da posição dicotômica – principalmente no futebol profissional – de que o jogador ocupa um lugar de duplo estatuto, sendo produtor de mercadoria e a própria mercadoria. Os autores demonstram como se dá a dinâmica centro-periferia do capital e como essa questão perpassa o funcionamento do esporte na forma de um aparelho ideológico, além de trazer uma proposta de como deve ser a luta do torcedor dentro do sistema.
Conforme já alertou Perina (2021), provavelmente Marx dividiria as questões econômico-políticas do futebol entre os detentores dos meios de produção e poder (dirigentes-proprietários, clubes e federações) e, os que vendem o seu trabalho e são explorados (jogadores de futebol e torcedores). No entanto, na contemporaneidade as relações de trabalho apresentam novos contornos que ainda mantém traços muito fortes da Modernidade, mas que ao mesmo tempo já trafegam pelo mundo pós-moderno com certas liberdades que podem causar determinadas angústias. Nos próximos meses discutirei estas questões convocando Zygmunt Bauman para o debate em torno das carreiras de futebolistas e novamente trazendo Karl Marx para as discussões. No momento, basta refletirmos e entendermos que há diversas categorias entre os jogadores de futebol, ou seja, há aqueles capazes de produzirem suas próprias mercadorias (e se auto-mercantilizarem também) e agregarem valor ao seu talento esportivo, com ganhos superiores ao contrato de trabalho com o clube ou liga – casos de Cristiano Ronaldo e Messi, por exemplo, entre outras estrelas do futebol – mas também há uma grande parcela de futebolistas que vendem os seus serviços de desempenho esportivo por valores baixos e, que disfrutam de contratos temporários e com pouquíssimas garantias em caso de lesão ou invalidez. Portanto, são – como tantos – trabalhadores explorados pelo interesse próprio da classe dominante e, somente poderão reverter tal processo com uma consciência de grupo baseada no bem coletivo. “O caminho para a verdadeira compreensão passa por uma revolução social, não metodológica” (BAUMAUN 2022, p.67). Tal condição já foi observada por vezes, em países nos quais os sindicatos de atletas são fortes e capazes de promover greves, com objetivos de mudar as relações de trabalho até então estabelecidas. No entanto, são movimentos ainda bastante isolados e fugazes para promover revoluções globais. Ainda assim, já houve episódios individuais nos quais os produtores de “mais-valia” saíram vencedores, como Jean Marc Bosman em 1995. Marx teria vibrado e comemorado a decisão da Corte Europeia como se fosse um gol de título e, Bosman que não teve grande destaque técnico em sua carreira seria admirado pelo sociólogo e revolucionário.
Vale também destacar que as relações entre clubes e federações, ou seja, entre os detentores dos meios de produção não é tão amistosa assim. Portanto há em grande medida uma concorrência pelo poder, gerando crises frequentes, que atenuam ou exterminam uma pseudo solidariedade burguesa no futebol. Vide o caso atual, no qual os grandes clubes europeus e mundiais estão travando uma guerra política contra a Uefa e a Fifa, na tentativa de criar uma Superliga, também como mecanismo para barrar o crescimento dos clubes e ligas árabes e asiáticas – livres de restrições de investimentos – que resolveram entrar de forma agressiva no mercado futebolístico mundial e, passaram a atrair atletas ainda no auge de suas carreiras. O mercado do futebol contemporâneo, mais do que nunca, é baseado no liberalismo econômico, algo que certamente seria criticado e condenado por Marx. Segundo Bauman (2022, p.73), a partir do pensamento marxista, “[…] sempre que uma instituição social aparece numa forma abstrata, como uma entidade em si, levando aparentemente sua própria existência e sujeitos a leis autônomas, podemos suspeitar que por trás dela se encontra o ato histórico da alienação, da transformação de uma parte da capacidade humana numa força que se opõe ao seu fundamento natural”.
Ainda, neste circuito da Futebolização, não esqueçamos dos aficionados – também divididos em múltiplas categorias de torcedores, fãs e seguidores – que ainda apresentam condições sólidas da Modernidade, mas ao mesmo tempo podem trazer aspectos líquidos do novo milênio, como a troca constante de preferências clubísticas baseada nas transferências das celebridades do futebol a cada nova temporada. Conforme defendo, há uma multiplicidade de crianças e jovens que preferem seguir atletas no cenário contemporâneo do futebol a se afiliarem por algum clube e, pelo mesmo terem a cobrança familiar e social de uma fidelidade eterna. Marx talvez adotasse também tal estratégia para não correr o risco de ser associado aos interesses de determinada agremiação ou grupo de dirigentes.
No contexto atual, possivelmente, Marx seria irônico ao ver estas duas últimas revoluções do futebol: a Lei Bosman e a iminente criação da Superliga. Em alguma medida, criadores estão prestes a inclinarem-se diante de suas próprias criações. Conforme alertava o revolucionário socialista, “A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir” (CASTRO 2014, p.13). De acordo com Marx, devemos partir de homens em suas atividades reais e, não do que é dito, imaginado ou representado. Sobre o caráter fetichista da mercadoria, vinculada aos jogadores de futebol – algo que pretendo explorar de forma mais aprofundada em outros textos – vale destacar que “o que interessa na prática, antes de tudo, a quem troca produtos, é a questão de quantos produtos estranhos ele vai adquirir com seu próprio produto, ou seja, em quais proporções os produtos se trocam” (CASTRO 2014, p.18). Fazendo uma analogia com o mundo da bola, podemos pensar com quais valores econômicos estas mercadorias (jovens jogadores de futebol) deixam a América Latina, são transformadas e adquirem “mais-valia” em mercados externos (Europa e, agora, Oriente Médio) e, após perderem seu valor de uso, retornam à origem como moeda de troca por novas matérias primas. Sem dúvida, a publicidade, a midiatização e o fetichismo dos mercados europeu – e mais recentemente –, asiático e norte-americano do futebol transforma objetos tangíveis (acessíveis) em intangíveis (inacessíveis), criando paralelamente estilos de vida e percepções de status a serem admirados e seguidos por crianças e jovens aficionados.
Mas tudo isso que foi pensado até agora poderia ser desmanchado, caso Marx – assim como outros filósofos fizeram – considerasse o futebol (ou os clubes de futebol) como uma religião. Autodeclarado ateu ou agnóstico, Marx argumentava que a religião era um sistema de crenças criado pelos homens que capacitava a classe dominante a manter seu poder prometendo à classe trabalhadora que as coisas seriam melhores no além. O pobre encontrava consolo na fé porque colheria uma recompensa pelo seu sofrimento. Fazendo a analogia de tais pensamentos com o futebol, Karl Marx poderia dizer que as dificuldades econômicas impedem a maioria das pessoas de encontrar conforto e felicidade verdadeira e, que estas esperanças seriam transferidas para o futebol com falsas perspectivas pela verdadeira felicidade ou pelo possível triunfo sobre o mais forte no campo esportivo, mas isto poderia ser alienante. Então, apesar de oferecer conforto e alegria, o futebol seria o suspiro da criatura oprimida. A síntese do pensamento do sociólogo alemão não alteraria: as pessoas se reúnem em grupos com os quais compartilham interesses sociais e econômicos contra aqueles que estão em conflito por tais interesses. Quando os meios de produção se alteram, há revoluções e a classe dominante é substituída por outra. Ou seja, provavelmente Marx enxergaria a luta de classes sendo reposicionada no futebol, como de fato ocorreu em diversos períodos históricos no planeta.
Finalizando este breve texto e análise superficial sobre algumas possíveis relações de Marx com o futebol, me arrisco a apontar qual seria o clube – ou clubes – preferido do teórico político, bem como seus ídolos no esporte mais popular do planeta. Partindo de um dos pressupostos que defendi em minha tese sobre a Futebolização contemporânea – ou seja, que as identidades ou marcas identitárias do futebol se dão na infância e juventude – penso que Marx seria torcedor de um clube alemão de médio ou baixo destaque, com trajetória errante entre a primeira e a segunda divisão nacional e, sem qualquer possibilidade de chegar à fase de grupos da Champions League. Talvez fosse aficionado o FSV Mainz 05, ou do FC Köln, ou ainda do Fortuna Düsseldorf, devido ao seu local de nascença e infância. Mas poderia também ser torcedor do FC Sankt Pauli por questões políticas, ou do FC Union Berlim já que frequentou a Universidade da capital alemã na fase de jovem-adulto. Com menos chances, teria sido torcedor do Chemnitzer FC, já que a cidade de Chemnitz trocou de nome para Karl-Marx-Stadt por algumas décadas no pós-guerra. E jogadores-celebridades? Quais chamariam atenção de Marx? Certamente aqueles vinculados a causas trabalhadoras e políticas … Mathias Sindelar, Ruben Svensson, Carlos Humberto Caszely, Ivan Ergic, as irmãs Lucia e Margarita Döller, Irena Müller, e os brasileiros Afonsinho, Reinaldo e Sócrates estariam entre aqueles que seriam admirados por Karl Marx. Não tenho aqui espaço e tão menos pretensões de esgotar este debate, para o qual sugiro maior aprofundamento daqueles pesquisadores e investigadores que se interessam por aplicar as teorias marxistas ao futebol. “Segundo Marx, a história vai eliminar a diferença entre aparências e essências, vai expor a verdadeira essência humana das relações e ações sociais, e, portanto, tornará possível compreende-las de maneira genuína o objetiva enquanto aplica os instrumentos de cognição mais triviais e práticos” (BAUMAN 2022, p.67).
Referências
ARAÚJO, Lucas Giachetto; GIGLIO, Sérgio Settani. O Capital no futebol: análise da mercadoria jogador. Cadernos de História, Belo Horizonte, v.22, n.37, novembro de 2021.
BAUMAN, Zygmunt. Hermenêutica e ciência social: abordagens da compreensão. Tradução por Fernando Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2022.
BUCKINGHAM, Will et al.(eds.). O livro da Filosofia. Tradução de Rosemarie Ziegelmaier. São Paulo: Globo, 2011.
CASTRO, Celso. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
KOCH, Rodrigo. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.
KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização: na Europa Contemporânea. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2022.
MATIAS, Wagner Barbosa. A economia política do futebol e o “lugar” do Brasil no mercado-mundo da bola. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade de Brasília (UnB), Distrito Federal, 2018.
PEINADO, Quique. Futbolistas de izquierdas. Benetússer (València, España): Fuera de Ruta, 2022.
PERINA, Fabio. Reflexões marxistas sobre futebol e violência. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 23, 2021.
The English Game. Inglaterra: Netflix, 2020. Minissérie em 6 episódios.
THORPE, Christopher et al. (eds.). O livro da Sociologia. Tradução de Rafael Longo. 2ª edição. São Paulo: GloboLivros, 2016.