149.23

A camisa como dádiva: presentear no futebol

Para Danielle Torri, pelas camisas presenteadas.

 

Quando eu era criança e o Flamengo tinha um time excepcional liderado por Zico, o vizinho com quem eu jogava futebol de botão e que na escola atuava como goleiro, ganhou de presente uma camisa original de seu time de coração. Rubro-negro fanático, vestia com orgulho a de número 6, de Paulo César Carpegiani. Pouco tempo depois, esse excelente segundo volante passou a ser treinador do próprio time, sagrando-se campeão de tudo, inclusive carioca, brasileiro, da Copa Libertadores e da Taça Intercontinental, em poucos anos. Segundo o amigo, um conhecido dele que receberia o mimo prometido pedira um exemplar a mais e o intermediário enviara duas camisetas. Vindo de um período de contusões no Internacional, a equipe em que se formara jogador, o meio-campista preferiu experimentar um outro número às costas, deixando o 5 para Júnior, já atuando na lateral-esquerda.

Muitos anos depois, terminado um sofrível empate sem gols entre Figueirense e Corinthians, presenciei uma cena algo estranha no Estádio Orlando Scarpelli, em Florianópolis. Estávamos em 2007 e um torcedor corintiano foi até o alambrado para encontrar o jovem atacante Willian, que logo rumaria para a Europa para, depois de quatorze anos de êxito – o que inclui duas Copas do Mundo –, voltar ao Parque São Jorge há poucos meses. O garoto tirou a própria camisa e entregou-a ao fã. Qual não foi minha surpresa, quando vi um líder de uma das mais importantes torcidas organizadas chegar ligeiro e, sem cerimônia, tirar o presente das mãos do torcedor e jogá-lo de volta para o jogador. A insatisfação com o mal momento da equipe, que naquele ano viria a ser rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro, deveria ser suficiente para recusar a dádiva.

Lembrava desses dois episódios ao tomar conhecimento do acontecido há duas semanas, no Estádio da Vila Belmiro, em Santos, quando um menino sofreu ameaças e por pouco não foi fisicamente agredido porque pediu e aceitou a camiseta de Jaílson, goleiro reserva do time visitante, o Palmeiras. A situação é conhecida e as reações foram, pelo menos a maioria delas, de desagravo e apoio ao pequeno santista, sendo ao mesmo tempo condenatórias aos covardes que o cercaram junto com seu pai, que o acompanhava. Como se não bastasse a cena, atroz em si mesma, ainda houve um vídeo em que a vítima se desculpava (eis aí a crueldade ainda maior) por ter eventualmente ofendido quem quer que fosse. Repetindo compulsivamente que era torcedor do Peixe, disse apenas que gostava do arqueiro suplente do Alviverde, assim como do titular, Weverton, frequentemente convocado para a seleção brasileira.

Jailson Palmeiras
Foto: reprodução Instagram

Receber uma camiseta de um time, sendo torcedor de outro, mostra discernimento e civilidade, expressa aquilo que o esporte tem de melhor, que é a possibilidade de manter a disputa, por acirrada que seja, nos limites do espaço e do tempo de jogo. O uniforme do oponente não é a bandeira conquistada ao inimigo, mas um presente que leva consigo algo daquele que presenteia. É por isso que Diego Maradona comemorou a vitória da seleção argentina sobre a brasileira, na Copa do Mundo de 1990, na Itália, vestindo a camiseta com a qual jogara Antônio Careca, seu amigo e companheiro no Napoli.

Parece que tudo ficou mais perverso e dá medo. Alguém dirá que se trata de atitude isolada, de gente irresponsável e criminosa, o que aconteceu na Vila. Estou de acordo, mas é preciso considerar todos os cuidados que hoje são necessários para ir a um estádio, ou mesmo para andar pela rua, a depender do lugar e da camiseta que se veste. Aqui mesmo no Ludopédio recordei de uma partida entre Avaí e Internacional que foi realizada nos domínios do Figueirense, em 1976[1]. Hoje seria mais fácil o time da Ilha mandar um jogo em Curitiba, a 300 quilômetros da capital catarinense, se não pudesse fazê-lo em sua própria arena. Daquela mesma partida, lembro-me de um torcedor colorado que cruzou a torcida avaiana para encontrar seus confrades. Fez isso caminhando devagar com sua bandeira em punho, em tom humorado, sendo coberto de vaias e nada mais.  

Tudo isso se perdeu e já não é possível, como me contou certa vez um velho torcedor do Atlético Mineiro, ir ao Mineirão acompanhado dos cunhados cruzeirenses. Mas a coisa não termina aí. Quando fico sabendo que algumas torcidas condenam seus integrantes que não vestem a camisa da agremiação, mas a do clube pelo qual torcem, dou-me conta de as coisas podem, sim, piorar.

É certo que as torcidas não devem ser, sem mais, criminalizadas, que são movimento social e podem mesmo mostrar união e responsabilidade, como quando marcham juntas pela democracia. É bom, no entanto, não esquecer o caráter de horda que podem assumir e, com ele, todo tipo de regressão que a massa alcança. Isso vale, inclusive, para as pesquisas acadêmicas que se ocupam da temática. Um pouco menos de condescendência, por favor.

Ilha de Santa Catarina, novembro de 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. A camisa como dádiva: presentear no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 23, 2021.
Leia também:
  • 175.29

    A relevância das torcidas para o espetáculo do futebol

    Wagner Soares Pereira
  • 169.10

    Escalafobets: futebol, apostas, tramoias e um outro torcer em jogo

    Georgino Jorge de Souza Neto, Júnio Matheus da Silva Cruz
  • 168.20

    Tutela e controle no torcer no Brasil

    Fábio Henrique França Rezende, Renato Machado Saldanha,