173.10

Notas metodológicas: procedimentos e técnicas para o mapeamento do circuito varzeano de São Paulo

Este texto integra a série especial Santa Marina, o circuito varzeano de SP e a preservação dos clubes esportivos populares, publicada na coluna Em defesa da várzea do portal Ludopédio. O principal objetivo é colocar em debate a urgência de garantir a reprodução e continuidade das práticas populares esportivas e culturais nas cidades brasileiras. Os textos, que serão publicados quinzenalmente ao longo de 2023 e 2024, apresentarão as atividades, etapas, metodologias, resultados e principais reflexões do “Mapeamento do Futebol Varzeano em São Paulo”, realizado em 2021, sob encomenda do Núcleo de Identificação e Tombamento (NIT) do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura do Município de São Paulo, a fim de reunir subsídios para identificar práticas culturais relacionadas ao futebol de várzea e para analisar processos administrativos de proteção do patrimônio cultural. Além disso, diante de um contexto marcado por reiteradas ameaças aos espaços urbanos onde se pratica o futebol popular, esta série busca colocar em discussão o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), clube amador centenário cujo espaço de atuação vem sendo ameaçado por um pedido de reintegração de posse pela multinacional Saint-Gobain.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Este texto, o terceiro da série, apresenta o conjunto diversificado de procedimentos, protocolos e técnicas adotado pela equipe para realizar a pesquisa. As diferentes abordagens metodológicas acionadas para contemplar os eixos previstos e delineados pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) também   foram articuladas com base nas áreas específicas de atuação dos(as) pesquisadores(as) que colaboraram com a realização do estudo. 

Conforme pontuado no texto anterior da série, tais procedimentos partiram da escolha de pontos nodais, a partir dos quais foram levantadas informações sobre os três eixos temáticos da pesquisa (campos; acervos e coleções varzeanaseventos, projetos e práticas culturais), que embasaram, então, a produção de um conjunto de mapas temáticos georreferenciados. Simultaneamente, foi realizada uma pesquisa etnográfica, com foco no Santa Marina Atlético Clube. 

Levantamento, organização e categorização dos dados

Os pontos nodais escolhidos, bem como os eixos  temáticos aprofundados para a construção do estudo atenderam ao seguinte critério: elencar atividades pertencentes ao circuito do futebol varzeano espraiadas por diversas  regiões da cidade de São Paulo (SP), de modo a contemplar todas,  com diferenças e similaridades, representantes de épocas distintas, além de existentes (e resistentes) na cena contemporânea ocupada por esse esporte. Tal critério direcionou o estudo a contemplar, também, municípios da RMSP, abrangidos pela trama do circuito varzeano e pelas especificidades de cada ponto nodal. 

Cumpre destacar que os pontos nodais da pesquisa foram elencados, também, como desdobramento de estudos anteriormente desenvolvidos pelo/as membros/as da equipe, a partir dos quais foi possível contar com pessoas representantes de times e clubes com as quais já existia um contato prévio e alguma fluidez. Ademais, tais estudos (Bonfim, 2018; 2019; Santos, 2019; 2021; Spaggiari, 2009; 2016), também contribuíram para potencializar o entendimento sobre os eixos temáticos. 

O estudo apresentado também foi  fruto de perspectivas privilegiadas por uma vasta bibliografia acadêmica, bem como do trabalho de campo permanente do Centro de Referência do Museu do Futebol (CRFB), setor responsável por pesquisar e documentar diferentes expressões do futebol no Brasil, com vistas à constituição do acervo do Museu do Futebol. O uso dessa fonte justificou-se pelo fato das pesquisas do CRFB organizarem-se por projetos próprios ou em parceria com universidades, centros de pesquisa ou pesquisadores individuais. O CRFB se organiza em duas em duas linhas:

  • Memória Viva, pautada na metodologia da história oral, com o objetivo de criar séries de entrevistas gravadas em áudio e/ou vídeo, registrandoo testemunho de pessoas sobre acontecimentos, conjunturas e práticas relacionadas ao futebol ou outro tema que interesse, oportunamente, ao Museu do Futebol. 
  • Na Rede, inspirada principalmente no método etnográfico, com o objetivo de identificar, sobretudo a partir de pesquisa de campo, locais, personagens, coleções, eventos e práticas relacionadas ao futebol contemporâneo. 

A produção do CRFB revela registros históricos e etnográficos que ao longo dos últimos dez anos privilegiaram e preservaram coleções sobre futebol amador/várzea na cidade de São Paulo. Sendo assim, foi um aporte relevante para a pesquisa encomendada pelo DPH. 

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Mapeamento e georreferenciamento

Os mapas georreferenciados que compuseram o estudo foram distribuídos de acordo com os eixos e seções temáticas. Foram elaborados no software QGIS, tendo como referências as bases de dados disponibilizadas pelo Portal GeoSampa (Prefeitura Municipal de São Paulo), as informações disponibilizadas pelos/as varzeanos/as que contribuíram com a pesquisa e as informações disponibilizadas em páginas dos times e clubes nas redes sociais.

Para representar espacialmente os campos (CEUs, CDCs, Centros Esportivos, etc.), eventos (copas, campeonatos e festivais), entre outras questões relativas aos pontos nodais, adotou-se, com recorrência, o critério de localização do bairro de origem dos times e clubes, ou seja, a quebrada da metrópole onde se localizam. As quebradas, nesse caso, concernem às subdivisões dos Distritos Municipais, majoritariamente denominadas, em São Paulo (SP), como Vilas e Jardins. Para proceder ao georreferenciamento de tais quebradas, foram geradas camadas de pontos a partir do software MyMaps, tomando-se como referência o endereço e/ou nomenclatura cedida pelos/as varzeanos, ou seja, um critério de auto-identificação. Por exemplo: Ajax FC da Vila Rica ou Grêmio Família 11 do Jardim Rincão. Cumpre destacar que determinados times e clubes se auto-identificam pelo nome do próprio Distrito Municipal, por exemplo: Viracopos FC de Pirituba ou Danúbio da Freguesia do Ó. Nesses casos, na ausência de uma localização precisa da respectiva quebrada, adotou-se o critério de georreferenciar os próprios Distritos Municipais, a partir do ponto de localização destes no software citado. Tais camadas de pontos foram sobrepostas, em geral, em camadas de áreas, distinguindo os limites distritais e regionais de São Paulo (SP). 

Ademais, ressalta-se que os mapas temáticos relacionados às Copas e aos Festivais, por possuírem quantidade numerosa de participantes, incorreram, em determinados casos, na sobreposição de times e clubes pertencentes à mesma quebrada. Também foram recorrentes as situações em que parte das equipes pertenciam a outros municípios, tanto da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), quanto do Interior. Nesses casos, tais informações foram suprimidas dos mapas da capital paulista e, em determinadas situações, acrescidas em outros mapas temáticos, especificamente voltados à RMSP.  

Em suma, em termos quantitativos, as localizações indicadas nos mapas não correspondem integralmente às apresentadas nos textos e tabulações do estudo. Contudo, trata-se de condição minoritária e que não compromete a análise possibilitada pelas cartografias. 

Abaixo, exemplificamos um dos mapas temáticos que foram elaborados, sendo que outros exemplos serão apresentados nos textos posteriores da série, em consonância com seus respectivos enfoques.  No caso, trata-se de um mapa cujo enfoque foi uma das mais abrangentes competições da várzea paulistana atual: a Copa Martins Neto.

Mapa
Fontes: Portal Geosampa (2021), Google Maps e informações cedidas pelos clubes.

Pesquisa etnográfica

Para o caso do Santa Marina Atlético Clube (SMAC), especificamente, foi proposta uma pesquisa etnográfica, metodologia que, por excelência, ampara a produção de conhecimento da Antropologia. Entretanto, ao contrário de uma etnografia clássica, assinalada por longos períodos de trabalho de campo, neste caso, o curto período de duração da pesquisa exigiu a adaptação do método. Assim, durante 10 dias, foram realizados trabalhos de campo que tiveram como objetivo explorar as práticas e dinâmicas socioculturais constitutivas do SMAC. 

A pesquisa etnográfica buscou compreender não só as características e dinâmicas mais gerais do SMAC, como o uso das instalações para práticas esportivas e culturais, mas também as percepções, motivações e afetividades dos frequentadores em relação ao clube. Desse modo, foi possível acessar, de forma muito direta, suas escolhas e engajamentos nas atividades, suas trajetórias e rotinas, como interagem uns com os outros e como avaliam a importância e significados do clube em suas vidas. Foi possível, ainda, refletir sobre a centralidade do SMAC na região em que está inserido e a relação do clube com o entorno e com outros equipamentos da cidade. Afinal, trata-se de um contexto esportivo, cultural e de lazer que conserva a heterogeneidade do próprio contexto urbano. 

A etnografia apresentou-se, portanto, como um método privilegiado para que fosse possível entrar em contato com uma multiplicidade de narrativas e controvérsias que conferem sentido à existência e às transformações de um clube com 108 anos de história – o mais antigo em atividade na cidade. Para esquadrinhar esse contexto multifacetado, alguns eixos de análise foram elencados para levantar possíveis caminhos de entendimento e pistas explicativas sobre o SMAC: Memórias, Futebóis e Sociabilidades. 

Cumpre destacar que, embora inseridos no circuito varzeano como um todo, tais eixos de análise, enfocados no Santa Marina, foram apresentados em seções específicas do relatório final do estudo. 

*****

No próximo texto, o quarto da série, apresentaremos as principais reflexões que nortearam a seleção de alguns contextos varzeanos (clubes e espaços) enquanto pontos nodais do estudo, bem como as justificativas relativas a cada um deles.

Santa Marina
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Referências

BONFIM, Aira F.. Negritude futebol clube: pretos, brancos e cinzas. Mosaico. Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, p. 161-176, 2018.

BONFIM, Aira F.. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: Uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. 213 f. Dissertação (Mestrado em História) – Escola de Ciências Sociais, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.

SANTOS, Alberto Luiz dos. Lugares do futebol no Jaraguá/SP: lógicas de organização, expressões simbólicas e tendências do futebol de várzea contemporâneo. FuLiA / UFMG. Belo Horizonte, v. 4, n. 2, p. 75-95, 2019.

SANTOS, Alberto Luiz dos. O samba como patrimônio cultural em São Paulo (SP): As batucadas de beira de campo e o futebol de várzea. 2021. 322 f. Tese (Doutorado Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.

SPAGGIARI, Enrico. Tem que ter categoria: Construção do saber futebolístico. 2009. 265 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Aira F. Bonfim

Mestre em História pela FGV com pesquisas dedicadas à história social do futebol praticado pelas brasileiras da introdução à proibição (1915-1941). É produtora, artista-educadora e por 7 anos esteve como técnica pesquisadora do Museu do Futebol. O futebol de várzea, os  debate sobre patrimônios e mais recentemente o boxe e o circo, são alguns temas em constante flerte... 

Alberto Luiz dos Santos

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (REPEP) e do Grupo de Pesquisa Patrimônio, Espaço e Memória, vinculado ao Labur/FFLCH/USP (CNPq). Possui produção acadêmica voltada às área de Geografia Urbana e Patrimônio Cultural, desde 2012, com enfoque nas referências culturais vinculadas ao futebol de várzea, após 2016. 

Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

BONFIM, Aira F.; SANTOS, Alberto Luiz dos; SPAGGIARI, Enrico. Notas metodológicas: procedimentos e técnicas para o mapeamento do circuito varzeano de São Paulo. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 10, 2023.
Leia também:
  • 178.32

    “Camisa 12”: um espaço de sociabilidade e paixão clubística na revista Placar

    Maria Karolinne Rangel de Mello
  • 178.30

    Ser (ídolo) ou não ser…

    Eduarda Moro
  • 178.28

    Projetos sociais e práticas culturais no circuito varzeano

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim