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O racismo no futebol e a educação física escolar: reflexões a partir do caso Vinícius Júnior

Thiago José Silva Santana 18 de julho de 2023

O caso de racismo novamente[1] sofrido por Vinícius Junior, atleta do Real Madri, em um jogo contra o Valência[2], movimentou o mundo do futebol provocou reações em outros campos não diretamente ligados ao mundo da futebol. As manifestações de apoio à Vinícius Junior vieram de várias pessoas, desde atletas de outros esportes como o jogador de basquete e armador da seleção brasileira Yago Mateus[3], ou mesmo do mundo artístico, como no caso da cantora Anitta. A artista usou uma rede social para manifestar seu apoio à Vinicius Junior logo após sua participação em um show que antecedeu a final da liga dos campeões da Europa 2022/2023[4]. O alcance da repercussão do caso chegou levar até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) se pronunciar quanto ao racismo sofrido pelo atleta[5].

Os casos de racismo no futebol tem tido muita repercussão na mídia de uma forma geral, assim como nas redes sociais digitais, o que revela como essa pauta é hoje um tema importante de ser debatido nos vários espaços da sociedade. Para tanto, vale lembrar que as denúncias contra o racismo na sociedade já são historicamente feitas pelas várias organizações do Movimento Negro.

Marcelo Carvalho
Marcelo Carvalho com a camisa do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

No âmbito esportivo, em especial no futebol, uma importante inciativa é o Observatório da Discriminação Racial no Futebol[6]. Para quem não conhece o trabalho do Observatório, a palestra ministrada pelo idealizador do projeto, Marcelo Carvalho, está disponível aqui no Ludopédio[7].  Do ponto de vista das instituições como clubes e federações há campanhas contra o racismo, que no caso de muitos clubes, se restringe à publicações nas redes sociais. Salvo raras exceções como o Bahia, que possui um núcleo de ações afirmativas[8]. Do ponto de vista da legislação, somente em 2023 que a injuria racial passa a ser tipificada como crime de racismo[9]. O que mostra a importância de se adaptar a legislação para movimentar outras instituições no combate ao racismo.

Também em 2023 completaram-se os 20 anos da promulgação da lei 10.639/03 que tornou obrigatório nas escolas o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira[10]. Essa lei foi posteriormente alterada em 2008 pela lei 11.645 que incluiu a questão dos povos originários[11]. Tais leis são resultados das lutas históricas dos Movimentos Negro e Indígena. Portanto a educação conta com um importante marco para tratar dessas questões na escola.

Além de uma legislação que contemple as questões étnico-raciais, é preciso produzir uma educação que seja de fato antirracista. E no que tange ao futebol a educação física como componente curricular pode dar uma enorme contribuição, visto que o esporte é um dos seus objetos de ensino.

Historicamente a educação física é uma disciplina que abordava as práticas corporais quase exclusivamente pelo viés prático das mesmas, deixando de lado uma discussão que problematize as questões étnico-raciais, de gênero e sexualidades, de classe, entre outras. A preocupação com a dimensão crítica e reflexiva iniciada na década de 1980 foi importante para a área se debruçar sobre outros aspectos que influenciam as práticas corporais.  Isso não significa que a educação física, como um todo, tenha hoje essa perspectiva. Até porque há atualmente outras formas de abordagem que vislumbram a educação física sob outras perspectivas, como por exemplo, a cultural. Não cabe nesse texto retomar a mudanças nas abordagens de ensino que a área passou ao longo do tempo. Mas é importante frisar que um olhar crítico para o futebol, e para as demais praticas corporais, é uma das tarefas da educação física. E quando se pensa a respeito do conteúdo das leis 10.639 e 11.645 ainda há um longo caminho pela frente, E entre o pontos que carecem maior atenção vale destacar a necessidade de capacitação de professores/as.

Essa lacuna formativa é indicada no estudo de Pereira et al (2019)[12] com professores(as) da rede municipal de Fortaleza revelou que embora a maioria desconheça o conteúdo das leis trabalham nas aulas de educação física com a temática étnico-racial. As autoras também apontam para a importância de se elaborar instrumentos e documentos com o intuito de construir um currículo intercultural, bem como a necessidade de práticas pedagógicas que tematizem as relações étnico-raciais na escola.

Embora as autoras mostrem que a maioria das/os professores/as trabalhem com as questões étnico-raciais há um significativo desconhecimento sobre a lei. Refletindo sobre a necessidade de capacitação, e tendo em mente a importância de se discutir o racismo no futebol, os cursos de capacitação são uma forma suprir essa lacuna, muitas vezes oriunda da formação universitária.

Esse aspecto da formação é também apontado por Carolina Nóbrega (2020), que ao pesquisar professoras/se da rede municipal de São Paulo verificou que muitos buscam cursos de pós-graduação para suprir a lacuna acerca da educação para as relações étnico-raciais.

Sobre esse tema cabe lembrar da inciativa Ludopédio Educa com o curso “Futebol e racismo: uma introdução” realizado em 2021[13]. Além de cursos há publicações que abordam o futebol para além da dimensão do jogo e que se preocuparam em auxiliar professores/as. Do ponto de vista do ensino básico há o livro “O ensino do futebol: para além da bola rolando”[14] que entre seus capítulos aborda a questão do racismo. Do ponto de vista da formação universitária o livro “Futebol na sala de aula: Jogadas, dribles, passes, esquemas táticos e atuações para o ensino de Ciências Sociais e de História”[15] também há em um dos seus capítulos a abordagem da questão racial no futebol. Além desses livros citados as obras de Corsino e Conceição (2016)[16] “Educação Física Escolar e Relações Étnico raciais: subsídios para a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08” e de Venâncio e Nóbrega (2020)[17] são importantes exemplos que contribuem para a sensibilização acerca das questões étnico-raciais na educação física. Há autoras/es fundamentais como Nilma Lino Gomes, Sueli Carneiro, Lélia Gonzales, bell hooks, Abdias do Nascimento, entre tantos outros. Os exemplos que apresentados aqui são algumas obras mais diretamente relacionados à educação física, o que não descarta a importância de se apropriar dos pensamentos dessas/es autoras/es fundamentais.

Além do aspecto formativo outra reflexão importante é entender do que se trata produzir um ensino antirracista do futebol. Para isso é preciso compreender o que significa realizar uma educação física antirracista. Nesse sentido Carolina Nóbrega (2020) apresenta uma importante reflexão na qual a autora nos apresenta que educação física antirracista: “… propõe uma inversão, ou seja denúncias são importantes, mas é a produção de anúncios que muda a realidade, inscrevendo nesse ato político a quebra do silêncio, que tira população negra/preta da condição de encarcerados na própria realidade” (NÓBREGA, 2020. p.57)[18].

Vini Jr
Vinicius Junior atuando pelo Real Madrid. Foto: canno73/Depositphoto.

Portanto, além tratar de temas como as denúncias contra racismo no futebol, como o ocorrido com o jogador Vinícius Júnior, é também importante valorizar o protagonismo negro nesse esporte que mobiliza milhões de pessoas no Brasil. As exposições, ou textos, que abordem o protagonismo negro no futebol, como a exposição “Tempo de Reação – 100 anos do goleiro Barbosa”, são eventos importantes em serem objetos de ensino da educação física escolar. Esse é um exemplo de um caminho, entre tantos possíveis, para a produção de anúncios, apontando para a realização de um ensino antirracista do futebol na educação física.

Por fim, o caso Vinícius Júnior nos mostrou o quanto precisamos avançar no Brasil e no mundo, sobretudo nos países “colonizadores” /invasores, para a superação do racismo no futebol e na sociedade como um todo. A educação física escolar pode contribuir de forma significativa para a discussão das relações étnico-raciais na escola. E para isso a preocupação com os conteúdos das leis 10.639 e 11.645 não pode ser ficar ao sabor do interesse pessoal de professores/as. É importante que se pensem em políticas públicas que se preocupem em capacitar profissionais para trabalharem com qualidade o conteúdo de tais leis. E o futebol, com sua enorme capacidade de despertar o interesse de estudantes em todo país pode e deve ser trabalhado com a complexidade de seu universo, e que passa de forma forte pelo racismo e das questões étnico-raciais.

Notas

[1] Esse foi o décimo caso de racismo sofrido pelo jogador. Observando o total de casos denunciados em pelo menos seis nenhuma medida foi tomada contra os agressores. Mais informações sobre os caso ver em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2023/05/o-que-aconteceu-com-os-suspeitos-de-racismo-nos-10-casos-envolvendo-vinicius-junior-cli0e8tva004f0165cbwpc44h.html

[2] https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-espanhol/noticia/2023/05/21/valencia-x-real-madrid-e-interrompido-por-racismo-contra-vinicius-junior.ghtml

[3] https://ge.globo.com/basquete/noticia/2023/05/23/yago-mateus-tambem-vitima-de-racismo-defende-vini-jr-voce-me-representa.ghtml

[4] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/06/10/anitta-vini-jr-champions.htm

[5] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2023-05/onu-condena-racismo-contra-vini-jr-e-cobra-acoes

[6] https://observatorioracialfutebol.com.br/

[7] https://ludopedio.org.br/racismo-no-futebol-para-alem-das-quatro-linhas/

[8] https://observatorioracialfutebol.com.br/acoes-afirmativas-do-bahia-viram-exemplo-para-clubes-brasileiros/

[9] https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/01/13/sancionada-lei-que-equipara-injuria-racial-ao-crime-de-racismo

[10] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.639.htm#art1

[11] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm

[12] PEREIRA, Arliene Stephanie Menezes, et al. Aplicação das leis 10.639/03 e 11.645/08 nas aulas de educação física: diagnóstico da rede municipal de Fortaleza/CE. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Volume 41, Issue 4, out–dez 2019. p. 412-418.

[13] https://ludopedio.org.br/ludopedio-educa-futebol-e-racismo-uma-introducao/

[14] https://ludopedio.org.br/biblioteca/o-ensino-do-futebol/

[15] https://ludopedio.org.br/biblioteca/futebol-na-sala-de-aula/

[16] Corsino, Luciano Nascimento; Conceição, Willian Lazaretti da. (Org.). Educação Física Escolar e Relações Étnicoraciais: subsídios para a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08. 1ed.Curitiba: CRV, 2016, v. 11, p. 45-58.

[17] VENÂNCIO, Luciana; NOBREGA, Carolina Cristina dos Santos (Orgs.). Mulheres negras professoras de educação física. Curitiba: CRV, 2020.

[18] NOBREGA, Carolina Cristina dos Santos. Por uma educação física antirracista. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 34, p. 51-61, 2020.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Thiago

Atleticano. Professor. Membro do GEFuT - Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas e do Pensando a Educação Física Escolar.

Como citar

SANTANA, Thiago José Silva. O racismo no futebol e a educação física escolar: reflexões a partir do caso Vinícius Júnior. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 18, 2023.
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