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Outros olhares sobre a rivalidade Brasil x Argentina

Fabio Perina 21 de novembro de 2023

Esse texto visa articular várias épocas, vários temas e várias dimensões como seleções, clubes e até alguns lampejos de política, história e cultura. Portanto, ir muito mais além da pergunta clichê monótona e favorita de taxistas e tipos pouco futebolizados: “Pelé ou Maradona?”. E também muito além de outro clichê: “jogo bonito” ou “resultadismo”? Falar dessa rivalidade nos últimos anos em uma dimensão restrita às seleções implica levar em conta provocações cruzadas com cada lado buscando alguma forma de desvalorizar o rival conforme inúmeros critérios podem ser mobilizados. Na dimensão restrita dentro de campo, os brasileiros tendem a dar ênfase nas últimas décadas ao maior número de vitórias em confrontos diretos e títulos de Copa América e sobretudo de Copa do Mundo. Enquanto os argentinos tendem a ampliar a dimensão restrita dos resultados e nele enxergar elementos mais qualitativos, ou seja, nos confrontos mundialistas levam desvantagem geral. Vitória do Brasil em 74 na Alemanha. Empate em 78, inclusive quando ambos mais se afastaram do “jogo bonito” na conhecida “batalha de Rosário”. Vitória do Brasil em 82 na Espanha com direito a baile de Zico, Falcão, Serginho e outros. Embora por fim os argentinos venceram a última e justamente a mais agônica na Copa de 90 na Itália com o famoso gol de Caniggia com passe de Maradona contra o favoritismo de Careca e outros. Assim como o “resultadismo” é uma ferramenta de conveniência por conta de também se orgulham de terem vencido com Messi a última Copa do Mundo e o último título direto vencendo a Copa América em pleno Maracanã.

Como o intuito desta coluna é o de ampliar olhares, começo justamente com uma menção a uma convergência que se desenvolve no “futebol moderno” em ambos países à partir de meados dos anos 90 com a criação dos jornais “Olé” e Lance”. Dois ícones de um novo estilo de jornalismo mais próximo do entretenimento e com frequência do sensacionalismo. O que significou um novo padrão de relato midiático de incitar a provocação ao rival tanto quanto exaltar a própria equipe. Em outros termos, na ausência de conflitos militares recentes, em tempos contemporâneos é pelo futebol que brasileiros e argentinos consolidam sua própria identidade em contraponto ao outro. Embora isso também alimente as acusações da rivalidade Argentina x Brasil ser bem mais “midiática” do que uma rivalidade “raiz” por motivos futebolísticos como Argentina x Uruguai (quem nas primeiras décadas do século 20 disputavam os principais títulos do continente) ou por motivos militares como Argentina x Chile. (Obs: por aqui sem se preocupar em conceitualizar essa “midiatização” embora apenas a contextualizar na dimensão “desde cima” entre grandes corporações empresariais e seu impacto nos tele-expectadores. Embora do meio para o final do texto também tratarei da dimensão “desde baixo” apenas entre torcedores, sobretudo os mais envolvidos).

Olé
Fonte: reprodução

 

Uma valiosa leitura de ampliação de olhares para além da dimensão restrita do esporte e explorando reflexões de cultura e história é de Wisnik (2007). Em um livro com centenas de páginas instigantes com inúmeras reflexões sobre a seleção brasileira e a relação com a identidade brasileira e sobretudo o futebol como um todo, algumas delas são dedicadas à comparação com a seleção argentina e, em última instância, entre os dois países. A começar pelo conhecido jogo de palavras: “Os brasileiros amam odiar os argentinos” / “Os argentinos odeiam amar os brasileiros”. O que pode ser elaborado é que cada torcida possui uma relação diferente com o próprio jogo e com a própria vida. Ou seja, a torcida brasileira tende a começar com a catarse da euforia na entrada da equipe em campo e depois com a bola rolando silêncios e até vaias intercalados. Enquanto a torcida argentina tende a um ritmo mais cadenciado sofrendo junto do time “en las buenas y en las malas”. Aqui, um esporádico carnaval. Ali, um metódico tango. (Obs: embora para além dos clichês musicais a cultura futeboleira de cada país vibrou por outros ritmos: como o rock nos anos 80 e 90 aqui e lá e dos anos 2000 em diante o funk aqui e a cumbia lá). Mas o ponto em que o texto de 2007 desse literato mais reverbera em 2023 é a de uma espécie de “faltas psicanalíticas” complementares na formação social de cada país. Por um lado, o futebol brasileiro (como boa parte da sociedade brasileira e do que se entende por “cultura popular”) com seu clichê de “jogo bonito” tanto enaltece ser produto da miscigenação de vários povos, numa espécie de “veneno-remédio” da profunda desigualdade social e déficit educacional. Por outro lado, o futebol argentino com frequência reproduz algumas das piores mazelas da sociedade argentina: o racismo como um profundo apagamento dos povos originários (e mal-trato aos imigrantes sul-americanos contemporâneos) proporcional a uma exaltação dos imigrantes europeus brancos. Em termos mais profundos, a suposta crença na redenção de um projeto de civilização que acabou se tornando mais violento que a própria barbárie que alegava suprimir.

Voltando ao futebol após essa breve digressão sociológica, é preciso mencionar as mútuas acusações diante de polêmicas mundialistas entre os países como mais um combustível da rivalidade. No lado brasileiro, é praticamente unânime a narrativa sobre 78 na qual a seleção argentina precisaria vencer a Copa do Mundo que sediou em plena ditadura militar com a cumplicidade da FIFA. Já do lado argentino, uma narrativa bem menos conhecida por aqui sobre 94: que justamente no último ano da presidência de Havelange seria conveniente para a FIFA afastar Maradona por doping em plena Copa do Mundo para deixar o caminho livro para finalmente o Brasil voltar a ser campeão mundial. Assim como nos confrontos mais atuais entre clubes a nova “vilã” da estória é a Conmebol sendo sempre acusada por favorecer o outro lado por arbitragens e manobras de bastidores.

Copa 1978
Argentina x Brasil na Copa de 1978. Foto: reprodução

No entanto, nem tudo são elementos convergentes e complementares, havendo também notórios elementos desproporcionais. Afinal, até onde alcança minha observação empírica, existem muito mais brasileiros que admiram tanto a seleção argentina a ponto de usarem a camisa Albiceleste do que o contrário de argentinos usarem a camisa Amarelinha. Certamente no estudo de inúmeras rivalidades entre clubes e seleções esse seja um critério muito inusitado e talvez até inédito. Assim como minha vivência de rivalidade clubista remete obrigatoriamente a uma premissa dividir e disputar um espaço próximo de um bairro ou uma cidade; porém, pelo contrário, pelos interiores desses grandes territórios certamente há milhões de argentinos e muito mais milhões de brasileiros que jamais na vida verão um rival na dimensão real fora da dimensão midiática. O que fortalece o argumento da mídia torná-la super-estimada.

Outro elemento desproporcional remete ao inesquecível ano de 2014. Com profundas implicações nessa quase uma década que nos traz aos dias atuais. É aqui quando definitivamente a gangorra de provocações se desequilibrou: se os brasileiros se agarram ao resultadismo de seus jogadores, os argentinos se agarram ao “aguante” de seus torcedores. Ou seja, o mito e o sonho de “copar Copacabana” e sobretudo “copar el Maracanã”. Ou seja, um termo que alarga os olhares sobre o jogo dentro das quatro linhas regulamentado pela Conmebol e Fifa para dar visibilidade a um “outro jogo” no qual torcedores se tornam os únicos protagonistas que irradia do campo para o estádio e dele irradia para seu entorno e trajeto até ele. E atenção pois de agora ao final do texto esse será um elemento recorrente. Dispensam apresentações serem respectivamente a praia mais famosa e o estádio mais famoso do continente. Um acontecimento que tensiona a premissa que acabei de mencionar mostrando ser possível em condições excepcionais “invadir” um espaço inimigo no seu estádio e em seu entorno, com esses símbolos entre “guerra” e “festa” inseparáveis. Naquele momento, o elemento equilibrado da rivalidade foram os cantos provocativos de ambos lados: por aqui “mil gols, mil gols, só Pelé…” e por lá “Brasil, decime que se siente…”. Já o que é desequilibrado, que justamente condiciona qual a base social do “aguante” de cada lado, é diferenciar o imenso contraste entre torcedores de seleção brasileira pouco terem uma interface no dia a dia dos clubes, tendo havido um modesto esforço emergencial às vésperas do torneio de criar o Núcleo BR apenas para torcer pela “canarinha”. Enquanto pelo contrário dois elementos significativos: tanto surgiu uma organização bem mais orgânica e capilarizada através das Hinchadas Unidas Argentinas reunindo várias lideranças de barras dos clubes, quanto até mesmo o torcedor comum argentino festeja com tanta vibração como se fosse um “barra”.

E é à partir daqui que essa crônica fica mais interessante a meu ver por permitir mergulhar na dimensão clubista. Observo que ao longo da década de 2010 através da Libertadores como um “laboratório” em um sentido amplo. Não somente a midiatização conectando torcedores jogou a favor de um maior intercâmbio de suas músicas entre organizadas brasileiras e barras argentinas (e até mesmo com a formação de barras brasileiras), mas sobretudo em experiência face a face mais próximas se formaram alianças de organizadas brasileiras com várias barras sul-americanas de vários países (e mais recentemente entre hinchadas antifascistas de ambos idiomas), embora as uniões com barras argentinas sejam mais raras (sendo alguns casos notórios: Inter com Independiente, São Paulo com Chacarita e Fluminense com Vélez), por motivos ainda pendentes de serem investigados, os quais acredito ser mais plausível por profunda desconfiança mútua por estarem mergulhadas pela midiatização da rivalidade entre seleções conforme já comentado no início. O que se manifesta nos últimos meses no aumento da tensão nessa “zona cinzenta” entre provocação e discriminação, ou seja, o agravamento auto-reprodutivo de racismo e xenofobia. Uma discussão que aqui faço apenas uma menção embora bastante necessária sobre qual o “limite” (historicamente pactado na informalidade de regras sociais) entre um gesto ser “parte do jogo” ou uma violação de seus códigos. Em termos mais concretos, de um lado bananas atiradas e imitações de macacos e de outro lado notas de pesos argentinos sendo rasgadas. O que se casos isolados possuem um imenso potencial de expansão devido à midiatização. Essas e outras reflexões profundas muito férteis, como a devida crítica à final única da Libertadores, remetem a um texto recente indispensável de Nico Cabrera também escrito “no calor da conjuntura”.

Ora, é um “troféu” para inúmeros torcedores sul-americanos (principalmente peruanos e colombianos mas também brasileiros) estando em Buenos Aires “copar el Obelisco” através de “banderazos”. O que enxergo um vínculo mais profundo diante de outros olhares sobre uma mesma década que é a elitização dos estádios por todo o continente, principalmente sua transformação em arenas. Dessa forma, no suposto projeto de prevenir multidões e fragmentar o acesso ao estádio em indivíduos-consumidores, as multidões reaparecem entrando nos estádios quando possível mas sobretudo elas resistem “copando” seu entorno. O que se no Brasil a arenização foi sentida de forma mais profunda também se inventaram novas formas de reaproximar torcedores de jogadores como treinos abertos e “invasão” a aeroportos.

Daí mais um elo fundamental de elaborar esse texto no calor da conjuntura dias depois de um Fluminense x Boca na final da Libertadores e dias antes de um Brasil x Argentina nas Eliminatórias, ambos no Maracanã. Vide como pano de fundo na Libertadores a condição do torcedor visitante ganhar ainda mais notoriedade à partir de 2019 com o decreto de final única em sede neutra pela Conmebol. Por motivos óbvios que as multidões de um clube finalistas se veem privadas de o apoiarem no próprio estádio como no tão sensato sistema de ida e volta. Diante de tantos anos estudando a elitização e sobretudo a criminalização do torcedor pelos sujeitos dominantes reguladores e organizadores do futebol como autoridades e dirigentes, a final da Libertadores foi um acontecimento muito fértil para entender as questões atuais de segurança no estádio, seu entorno e seu trajeto a ele. Pois ainda que grupos supostamente “radicais” como barras e organizadas de algumas dezenas ou no máximo centenas de membros podem ser vigiados e punidos quando há vontade política para isso, ainda assim as multidões em delírio com milhares de torcedores emergem como mais incontroláveis do que nunca. Por sua própria dinâmica de “copar a todos lados” e sobretudo incompetência recorrente das autoridades. Vide a evidência tão previsível na prévia de grandes partidas que toda hinchada visitante se concentra em Copacabana, o que facilitaria o planejamento preventivo. Dessa forma, há um acúmulo de elementos explosivos de incompetência da segurança pública no Rio de Janeiro e sobretudo da Conmebol que ao aplicar multas irrisórias aos casos racistas apenas “enxugam gelo” e os incitam a se proliferarem

Boca Fluminense
Torcedores de Fluminense e Boca Juniors chegam ao Maracanã para final da Libertadores. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em suma, a breve cronologia dessa final foi reveladora: na quinta-feira, uma “zona liberada” sem policiais permitiu que membros de organizadas tricolores agredissem e até roubassem torcedores comuns xeneizes; na sexta-feira, isso não os desencorajou de voltar a Copacabana para o prometido “banderazo”; e por fim, no sábado, horas antes da partida, o policiamento trocou a posição da omissão para o excesso ao reprimir os torcedores argentinos nas filas de entrada ao Maracanã. Evidente que isso teve impacto nas redes sociais com a organizada do Fluminense postando uma ameaça prévia com um trocadilho “pra racista é soco na boca”, enquanto a réplica da barra do Boca foi de terem rompido códigos, ou seja, atacar torcedores comuns não-organizados. Sempre atento às várias instâncias de políticas de segurança, especulo a hipótese adicional que os governos Lula-Haddad e Alberto-Massa (apesar de grande afinidade ideológica e pragmática na agenda de política exterior) não controlam suas tecnocracias de segurança através de seus ministérios e comandantes de policiamento, que por sua vez tampouco controlam os efetivos policiais “na ponta” direto nas condições concretas dos fatos, lhes dando imenso poder discricionário em dois atos perversos conforme registrado.

Por fim, a derrota xeneize significa no cenário clubista argentino um duplo alívio para o Independiente: segue sendo o auto-declarado “Rey de Copas” sendo o único com 7 conquistas de Libertadores e segue sendo o único clube argentino a ter “copado o Maracanã” vencendo torneios continentais lá. Olhar 2014 à luz de 2023 como mito e sonho significa que para os argentinos o “copar o Maracanã” emerge como uma lembrança de um “troféu” como combustível para novas jornadas. Ainda na espera de um grande confronto mundialista Brasil x Argentina para delírio das gerações mais jovens, os confrontos recentes de 2021 dão um aperitivo para a Argentina de repetir agora nas Eliminatórias uma vitória em pleno Maracanã como foi o titulo na Copa América (inclusive, sendo a única seleção a erguer uma taça no estádio exceto a local) e dão um aperitivo aos dois lados que confusões e polêmicas não deverão faltar como algo que apimenta qualquer rivalidade. Assim como foi o “escândalo de Itaquera” naquela mesma edição de Eliminatórias com desfecho em um duplo papel vergonhoso: primeiro pela ANVISA “copar” o gramado de forma ilegítima interrompendo a partida com somente 4 minutos jogados (em um contexto de reta final de pandemia) e por fim pela Conmebol de ter desistido de sua remarcação. Dessa vez, nada deve deter que as multidões “canarinhas” e “albiceleste” protagonizarem o que um grande clássico sul-americano deve ser. Uma grande partida na qual o “resultadismo” coloca um momento muito desproporcional entre o favoritismo da Argentina de Scaloni recém campeã mundial contra a instabilidade da reconstrução do Brasil com Diniz. Para além disso, que essas multidões possam “copar” o Maracanã e seu entorno nessa insólita e arrebatadora mistura de “guerra” com “festa”.

Leituras de Apoio

Brasil x Argentina: a politização dos anos 70/80

O épico Brasil 0x1 Argentina (ou porque 2021 não pode ser 1971!)

Fútbol argentino (IV): grandes hinchas

Cinco tesis sobre la rivalidad Argentina-Brasil a partir de la Final de la Libertadores 2023

WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. Editora Companhia das Letras

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Outros olhares sobre a rivalidade Brasil x Argentina. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 21, 2023.
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