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Sobre mercados, mercadorias e espetáculos: algumas respostas para a Futebolização

Rodrigo Koch 21 de junho de 2023

Findada mais uma temporada do futebol em grande parte do planeta, ou pelo menos na parte que detém as maiores receitas e poder da modalidade, e consequentemente iniciada a temporada das caçadas às ‘mercadorias’ deste ‘supermercado da bola’ nos cabe algumas análises sobre os renovados mercados futebolísticos que se apresentam, em virtude do rápido crescimento do modelo comercial da modalidade. Este texto tem como base algumas reflexões já realizadas nos últimos quatro anos de autoria própria (KOCH, 2020; KOCH, 2022; KOCH, 2023) e por parte de colegas – tanto jornalistas (LACOMBE, 2023) como professores acadêmicos (GONZÁLEZ, 2023; VIMIEIRO et al., 2019; VIMIEIRO, 2023) –, que dialogam e mergulham no processo contemporâneo da Futebolização, estabelecido e cada vez mais atuante desde a virada do milênio, conduzindo especialmente crianças e jovens a terem comportamentos de seguidores, consumidores e clientes; e por sua vez afastados da condição moderna de torcedores de um único clube, que era em um passado recente – preferencialmente – local e nacional.

Futebolização – fruto da globalização a partir do futebol espetacularizado e mercantilizado, com seus maiores efeitos desde meados dos anos 1990 – está imersa em um campo fluído que apresenta variações de tempos em tempos (sem que haja uma norma para cada período temporal) e, por isso, se transforma e se transfigura em cada espaço que penetra e a cada instante, adquirindo também contornos locais (KOCH, 2020). O fenômeno da Futebolização também pode ser considerado uma pedagogia cultural, pois desde a emergência dos Estudos Culturais a pedagogia passou a ser entendida como um mecanismo de ensinamento ou difusão de modos de ser e pensar, ou seja, a pedagogia não se limita a práticas escolares explícitas ou institucionalizadas: ela está na TV, em filmes, jornais, revistas, anúncios, videogames, aplicativos, brinquedos, e também nos esportes (STEINBERG, 1997). A Futebolização está na cultura e sem dúvida alguma produz seus ensinamentos. Vale lembrar que Giulianotti (2010 e 2012) salienta que o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e a mídia, que formam e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro.

El motor de un club surge del complejo reconocimiento de la identidad, erigida desde una perspectiva constructivista, donde discurso, símbolos, héroes y, en algunos casos, territorialidad, conforman una comunidad que goza simbólicamente de una homogeneidad “nacionalizante”, a la vez que permite la heterogeneidad de actores sociales que se encuentran en el reconocimiento de la pasión y el aguante (GONZÁLEZ, 2023, p.14)

Cristiano Ronaldo
Cristiano Ronaldo no Al Nassr FC. Fonte: Reprodução

Comecemos discutindo brevemente o ‘novo’ mercado: a Arábia Saudita. De fato, os árabes entraram com força na briga pelas principais estrelas do futebol mundial; mas ainda que já tenham atraído nomes como Cristiano Ronaldo, Benzema e Kanté a liga saudita enquanto competição em si continua sendo pouco atraente e, as estrelas tem infinitamente mais seguidores que os próprios clubes – fenômeno típico da Futebolização – o que nos leva a crer que quando Al Nassr FC ou Al Ittihad FC (ou as outras equipes árabes que pertencem ao mesmo fundo de investimento, também dono do Newcastle United FC) ficarem órfãos das mesmas, imediatamente perderão o interesse por parte dos emergentes clientes e consumidores. Os veteranos futebolistas – que poderiam ainda desfrutar de algum destaque na Europa – também são sabedores que dificilmente o mercado da Arábia Saudita lhes proporcionará condições a ponto de continuarem concorrendo aos prêmios de melhores do mundo. Cristiano Ronaldo, Benzema, Kanté – e talvez outras estrelas em breve – por enquanto são apenas gatilhos para a venda de produtos vinculados aos clubes e futebol árabe. Cabe ainda nos perguntarmos se as atuações destas celebridades em solo saudita, nos próximos anos, serão capazes de alterar a identidade futebolística de crianças e jovens tanto nos aspectos locais como nos globalizados; e também se esta será a melhor estratégia para a Arábia Saudita conquistar o direito de sediar uma Copa do Mundo FIFA nos próximos anos. São ainda perguntas que permanecem e que somente poderão ser respondidas com o tempo … Há o interesse de clubes árabes em uma verdadeira seleção de estrelas veteranas do futebol europeu. Muito em breve outros nomes especulados como Lloris, Sérgio Ramos, Jordi Alba, Busquets, Modric, Lukaku, Roberto Firmino e Aubameyang poderão se juntar aos recém-chegados. E vale lembrar que houve também investidas por Messi, agora embaixador do turismo do país do Oriente Médio, mesmo atuando em solo americano. A Arábia Saudita ocupa no momento o posto que a China tentou criar no cenário da Futebolização, mas que teve pouca adesão e viu seu projeto naufragar em aproximadamente uma década mesmo com os altos investimentos iniciais, apesar dos árabes estarem agindo de forma muito mais agressiva no mercado. O modelo adotado é criticado até mesmo pelo alto escalão dos dirigentes do futebol.

Benzema
Benzema na apresentação no futebol árabe. Fonte: Icon Sport/divulgação

Por outro lado, a contratação de Messi por parte do Inter Miami CF promete renovar o futebol nos Estados Unidos, principal sede da próxima Copa do Mundo FIFA. A estratégia americana para o futebol se mantém há décadas, atraindo jogadores veteranos renomados para alavancar o marketing da Major League Soccer (MLS). Através do sistema de franquias e abertamente tendo empresários como donos dos clubes, a constituição histórica destas agremiações e as dinâmicas que envolvem o esporte nos Estados Unidos diferem da maioria dos países – especialmente no futebol –, e portanto, em alguma medida todos lucram com a chegada de qualquer estrela esportiva. Depois de Messi, outros jogadores pretendidos pelo mercado árabe poderão parar também na MLS. Desde sempre, os americanos colocam tudo (inclusive clubes e jogadores) em prateleiras para serem vendidos e consumidos. Sem qualquer melindre ou hipocrisia, tanto as equipes como os atletas são mercadorias passíveis de consumo e suas eventuais transferências ao final dos contratos são fatores naturais do processo nos Estados Unidos. Em solo americano, esporte de alto rendimento e de entretenimento é algo pensado para proporcionar espetáculos, vender produtos e gerar lucros. O contrato recentemente estabelecido por Messi é prova disso, pois o grande destaque do último mundial terá participação nos lucros de uma infinidade de produtos atrelados a MLS, entre eles a comercialização de pay-per-view.

A partir das breves análises do que está acontecendo na Arábia Saudita e novamente nos Estados Unidos, convoco alguns apontamentos recentes feitos pela jornalista Milly Lacombe para avaliarmos o cenário contemporâneo através do processo da Futebolização. “O jogo hoje é um produto feito para a televisão” (LACOMBE, 2023). Sim, porque não só desse modo que se pode acomodar melhor o dinheiro que entra através de patrocinadores, mas também porque o espetáculo televisionado permite agregar milhares de aficionados (clientes e consumidores) nos mais distantes cantos do planeta, com uma série de ângulos e replays que vem transformando drasticamente a relação com o futebol. Ou seja, o jogo in loco tem outro significado e para muitos perdeu o sentido sem a série de imagens televisionadas e reprisadas.

[…] vários “pedaços” do futebol passam a ser comercializados e adquirem valor de troca. Por exemplo, esses “pedaços” agora comodificados implicam no aumento das verbas vindas de redes de TV a cabo, por satélite e serviços de pay-per-view; de companhias transnacionais envolvidas no patrocínio de clubes e estádios e aqueles advindos da venda de ações na bolsa de valores. Nesse sentido, o futebol passa a ser organizado predominantemente seguindo a lógica do mercado, operando como um setor da economia como outro qualquer. (VIMIEIRO et al., 2019, p.6)

[…] el proyecto de SADP reconfiguró la participación social y planteó una nueva forma de involucrarse en los clubes deportivos caracterizada por la especulación, el mercado y el espectáculo. Son los accionistas, los consumidores y los espectadores (asistentes al estadio o usuarios de la televisión por cable) los nuevos protagonistas del modelo deportivo (GONZÁLEZ, 2023, p.21)

Até mesmo, me permito, a discutir rapidamente o uso da palavra jogo – que nos remete ao aspecto lúdico, do futebol das ruas (‘fútbol callejero’) e das improvisadas peladas de bairro – algo que gradativamente vem sendo distanciado das relações que crianças e jovens estabelecem com o futebol na contemporaneidade. No Brasil, tal condição é impulsionada não só pela mercantilização do esporte, mas também pela especulação imobiliária das grandes cidades, bem como a crescente criminalização e violência urbana. Já no Chile, por exemplo, “se comenzó a privilegiar el valor económico de los encuentros deportivos como eventos de entretenimiento, por sobre la práctica y la promoción del deporte como espacio abierto a la ciudadanía” (GONZÁLEZ, 2023).

Messi, nova contratação do Inter Miami CF. Fonte: Reprodução
Messi, nova contratação do Inter Miami CF. Fonte: Reprodução

“O futebol deixa de ser uma mobilização popular, deixa de ser emoção, e passa a ser ferramenta de acúmulo de poder e de lavagem de dinheiro” (LACOMBE, 2023). De fato, o dinheiro que hoje movimenta o mercado futebolístico vem de regimes questionáveis. Grandes equipes europeias e de outras partes do mundo são fruto dos projetos de homens com riqueza acumulada através da exploração predatória. Vale perguntar qual o compromisso social das grandes estrelas neste circuito. Jogadores que se transferem para estas equipes questionam o sistema, ou são simples peças na engrenagem? Onde estão os engajamentos sócio-políticos? Comparados a um parafuso, por exemplo, atletas também serão facilmente substituídos quando ‘enferrujarem’.

Os modelos de esporte são ditados pelos Estados Unidos e Europa, lapidando a matéria prima para se tornar um produto comercializável. América do Sul e África continuam sendo explorados em suas matérias primas: no futebol contemporâneo, são fornecedores de “pés-de-obra”. Grandes grupos estão criando franquias futebolísticas mundiais. O grupo City – agora detentor da Champions League, torneio de maior prestígio internacional – tem equipes espalhadas pelo mundo todo, desde a Austrália até o Brasil. Outros grupos, também capazes de conquistar os troféus que lhe interessam, já estão ampliando seus tentáculos para os mais diversos mercados. Os torneios seguem as fórmulas ditadas pela UEFA e seus afiliados. Os campeonatos nacionais de quase todo o mundo passaram a ser disputados em pontos corridos, desconsiderando as marcas culturais locais. Será que o Brasil – um país de dimensões continentais – não mereceria mais do que apenas vinte clubes na elite nacional? Temos de fato um Campeonato Brasileiro, ou este é um Campeonato do Sudeste incrementado com ‘alguns temperos exóticos’ do sul e do nordeste? Desde a adoção dos pontos corridos em 2003 somente clubes de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais chegaram ao título nacional. Acredito que a Série A do Brasil deveria comportar entre 42 e 48 equipes, com uma fórmula que privilegiasse os clássicos locais e regionais. As copas continentais na América do Sul, África e Ásia seguem também o mesmo modelo da Champions League. Seria esta a melhor fórmula para a Libertadores? Por quê? Alguém sabe quem foram os Libertadores da América, que dão nome a este emblemático torneio futebolístico?

“Taticamente, o jogo acompanha a morte simbólica das arquibancadas” (LACOMBE 2023). O torcedor da arquibancada, cede espaço ao cliente da cadeira numerada. Ao torcedor assalariado e com pouco poder de compra sobram os bares e pubs abarrotados em torno de telas (por vezes diminutas) onde se pode acompanhar à distância o espetáculo. As grandes arenas – que substituíram os estádios – são reservadas para quem pode consumir. Os maiores e mais interessantes torneios são produtos acessíveis para uma parcela eleita e diferenciada da população, que dificilmente nutre aspectos de fidelidade ou paixão familiar com os clubes. O ‘torcedor raiz’ da modernidade foi ‘convidado’ a se retirar para dar lugar ao seguidor do futebol pós-moderno, ou como costumo chamar, aos futebolizados. “Los socios se convirtieron en clientes, espectadores sin capacidades más que observar y consumir” (GONZÁLEZ, 2023). Para mais detalhes desta transformação das torcidas em consumidores, sugiro consultar Vimieiro (2023). Interessante e curioso neste aspecto é que “o Brasil teria se tornado, […], o país de ingressos mais caros do Mundo, em termos proporcionais à capacidade de consumo da população” (FERREIRA, 2013 apud VIMIEIRO, et al. 2019). “Quanto mais elitizado for o jogo mais aquele torcedor, que será chamado de cliente, exigirá comportamentos que sejam coerentes com o que ele pagou” (LACOMBE 2023). A questão é que muitas dessas medidas são amparadas na legislação, como o “Estatuto de Defesa do Torcedor, que reflete essa inclinação de se abordar o futebol como um negócio e os torcedores como consumidores” (VIMIEIRO et al. 2019). No entanto, racismo, machismo, misoginia, LGBTfobia e uma série de movimentos xenofóbicos crescem com esta ideia.

É preciso repensar! Percebo que já há ‘futebóis’ em circulação que em certas medidas são antagônicos, e conduzem crianças e jovens por caminhos distantes uns dos outros. Simplificando: há pelo menos um futebol para ser jogador ludicamente e, outro para ser apenas consumido neste circuito cultural no qual as lutas de poder estão estabelecidas. “A conformação atual do futebol brasileiro é híbrida, combinando de maneiras distintas em momentos distintos tradições, arcaísmos e modernismos” (VIMIEIRO et al., 2019, p.27).

Referências

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flâneurs: uma taxonomia de identidades do torcedor no futebolRecorde: Revista de História do Esporte. Volume 5 (1), p.1-35, 2012.

GONZÁLEZ, Felipe Leal. Hinchas, socios y clientes: neoliberalismo y participación social en los clubes deportivos Colo-Colo y Universidad de Chile (2002-2014). Cuadernos de Historia, n.58, Departamento de Ciencias Históricas Universidad de Chile, p. 11-40, junio 2023.

KOCH, Rodrigo. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.

KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização na Europa Contemporânea. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2022.

KOCH, Rodrigo. Arábia Saudita: o novo el dorado para os tentáculos da Futebolização? Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 22, 2023.

LACOMBE, Milly. Cinco dilacerantes verdades sobre o futebol que a vitória do City oferece. UOL, São Paulo, 11 de junho de 2023.

STEINBERG, Shirley. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis de; SANTOS, Edmilson Santos dos (Orgs.). Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre: SMED, 1997.

VIMIEIRO, Ana Carolina; QUEIROZ, Alice; MALDINI, Giovana; MARTINS, Maria Carolina. A economia cultural do futebol brasileiro no século XXI: comodificação, hibridez e contradições. Recorde, Rio de Janeiro, v.12, n. 1, p. 1-34, jan./jun. 2019.

VIMIEIRO, Ana Carolina. Torcedores como produtores: por uma abordagem comunicacional das culturas torcedoras. Recorde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 1-21, jan./jun. 2023.

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Como citar

KOCH, Rodrigo. Sobre mercados, mercadorias e espetáculos: algumas respostas para a Futebolização. Ludopédio, São Paulo, v. 168, n. 21, 2023.
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