175.30

Marx e o futebol contemporâneo e pós-moderno

Rodrigo Koch 30 de janeiro de 2024

Ao revisitar alguns textos que recentemente trataram de convocar o filósofo e sociólogo – entre outras atribuições – Karl Marx para discutir o futebol das primeiras décadas deste milênio, algumas novas provocações surgem e alimentam nossos pensamentos de como seria a relação deste jornalista, teórico político e – principalmente – revolucionário socialista com o esporte mais popular do planeta em tempos atuais. Como Marx reagiria à Lei Bosman de meados da década de 1990 e, agora, à nova decisão da Corte Europeia que dá liberdade aos clubes de se auto-organizarem em ligas e competições fora da Fifa e da Uefa? Quem seriam os representantes da burguesia e do proletariado neste circuito da Futebolização (KOCH 2020) para ele? E, finalmente, fosse Marx um aficionado em futebol, de que clube ele seria torcedor, ou de quais atletas e personalidades ele seria seguidor?  Antes de adentrarmos nestes questionamentos, são importantes algumas contextualizações e vale relembrar de como Marx foi utilizado em alguns trabalhos acadêmicos nos últimos anos. Destaco que “[…] foi a pergunta ‘por que’, e não ‘o que’ nem ‘como’ que a teoria da sociedade de Marx postulou como fundamental para a compreensão histórica” (BAUMAN 2022, p.88) e que “Para compreender uma época, devemos descobrir o tipo de produção específico dela: como as pessoas produziam a vida” (BAUMAN 2022, p.89).

Karl Marx nasceu em Trier (Renânia-Palatinado, Alemanha/Prússia) em 1818 e faleceu em Londres em 1883. Estudou Direito e Filosofia nas universidades de Bonn e Berlim; casou-se com a crítica de teatro e ativista política alemã Jenny von Westphalen; e por conta de suas posições e publicações políticas, Marx teve de viver no exílio com a sua mulher e filhos na capital britânica durante décadas, onde continuou a desenvolver o seu pensamento em colaboração com o pensador alemão Friedrich Engels e a publicar os seus escritos. Os seus títulos mais conhecidos são o Manifesto Comunista e os três volumes de O Capital. As teorias de Marx sobre sociedade, economia e política, sustentam que as sociedades humanas – a partir da Modernidade, segundo ele, dividida entre a burguesia e o proletariado – se desenvolvem através das lutas de classes. Portanto, Marx não teve grandes oportunidades de ter contato com o futebol e possivelmente não as teve, pois naquele momento o esporte ainda estava em estágio embrionário nas public schools inglesas e teria, inicialmente, um viés pedagógico e disciplinador, ou seja, longe do contexto do entretenimento espetacularizado e mercantilizado da contemporaneidade. Também é importante destacar que a configuração geopolítica europeia nos anos 1800 era bastante diferente do cenário que encontramos no século XXI. Parte deste contexto histórico é possível observar na minissérie The English Game (disponível na plataforma Netflix), que conta a história do talentoso operário Fergus Suter que muda o mundo elitizado do futebol da Inglaterra do século XIX. Em meio a crises sociais e assolado pela desigualdade, Fergus luta para reivindicar seu lugar no esporte e, se torna também uma mercadoria desejada.

mARX
Busto gigante de Karl Marx “fantasiado” de torcedor da Alemanha em fan fest da Copa do Mundo. Fonte: Reprodução.

Perina (2021), ao trazer Marx para o debate da violência no futebol, alertou que ao aplicar a teoria das classes sociais ao futebol implica situar os torcedores e jogadores como as classes dominadas; e os dirigentes, empresários e autoridades estatais como as classes dominantes. Matias (2018), em sua tese de doutorado, se reporta à forma espetacularizada do futebol e não do espetáculo em si ou mesmo do futebol de alto rendimento. Para o pesquisador, o futebol de espetáculo é uma mercadoria especial permeada pela presença dos veículos de comunicação (sobretudo pela televisão), grandes grupos econômicos e financeiros, com um público consumidor e atletas vistos como mercadorias. Matias (2018) procura desvelar o que está sendo o futebol espetacularizado no contexto do capitalismo tardio: com alguns clubes e ligas globais cobiçados por grandes grupos econômicos, acompanhados por bilhões de pessoas em todo o planeta, produtor de força de trabalho do atleta e de espetáculos, capaz de produzir “mais-valia” e, também, de ser um “palco” de valorização e de fonte de criação de outros produtos. Por fim, para citar mais um trabalho, Araújo e Giglio (2021) se propõem a analisar, a partir do primeiro volume de O Capital, a questão da mercadoria no futebol, mais especificamente do jogador como mercadoria. Isso foi feito partindo da posição dicotômica – principalmente no futebol profissional – de que o jogador ocupa um lugar de duplo estatuto, sendo produtor de mercadoria e a própria mercadoria. Os autores demonstram como se dá a dinâmica centro-periferia do capital e como essa questão perpassa o funcionamento do esporte na forma de um aparelho ideológico, além de trazer uma proposta de como deve ser a luta do torcedor dentro do sistema.

Conforme já alertou Perina (2021), provavelmente Marx dividiria as questões econômico-políticas do futebol entre os detentores dos meios de produção e poder (dirigentes-proprietários, clubes e federações) e, os que vendem o seu trabalho e são explorados (jogadores de futebol e torcedores). No entanto, na contemporaneidade as relações de trabalho apresentam novos contornos que ainda mantém traços muito fortes da Modernidade, mas que ao mesmo tempo já trafegam pelo mundo pós-moderno com certas liberdades que podem causar determinadas angústias. Nos próximos meses discutirei estas questões convocando Zygmunt Bauman para o debate em torno das carreiras de futebolistas e novamente trazendo Karl Marx para as discussões. No momento, basta refletirmos e entendermos que há diversas categorias entre os jogadores de futebol, ou seja, há aqueles capazes de produzirem suas próprias mercadorias (e se auto-mercantilizarem também) e agregarem valor ao seu talento esportivo, com ganhos superiores ao contrato de trabalho com o clube ou liga – casos de Cristiano Ronaldo e Messi, por exemplo, entre outras estrelas do futebol – mas também há uma grande parcela de futebolistas que vendem os seus serviços de desempenho esportivo por valores baixos e, que disfrutam de contratos temporários e com pouquíssimas garantias em caso de lesão ou invalidez. Portanto, são – como tantos – trabalhadores explorados pelo interesse próprio da classe dominante e, somente poderão reverter tal processo com uma consciência de grupo baseada no bem coletivo. “O caminho para a verdadeira compreensão passa por uma revolução social, não metodológica” (BAUMAUN 2022, p.67). Tal condição já foi observada por vezes, em países nos quais os sindicatos de atletas são fortes e capazes de promover greves, com objetivos de mudar as relações de trabalho até então estabelecidas. No entanto, são movimentos ainda bastante isolados e fugazes para promover revoluções globais. Ainda assim, já houve episódios individuais nos quais os produtores de “mais-valia” saíram vencedores, como Jean Marc Bosman em 1995. Marx teria vibrado e comemorado a decisão da Corte Europeia como se fosse um gol de título e, Bosman que não teve grande destaque técnico em sua carreira seria admirado pelo sociólogo e revolucionário.

Vale também destacar que as relações entre clubes e federações, ou seja, entre os detentores dos meios de produção não é tão amistosa assim. Portanto há em grande medida uma concorrência pelo poder, gerando crises frequentes, que atenuam ou exterminam uma pseudo solidariedade burguesa no futebol. Vide o caso atual, no qual os grandes clubes europeus e mundiais estão travando uma guerra política contra a Uefa e a Fifa, na tentativa de criar uma Superliga, também como mecanismo para barrar o crescimento dos clubes e ligas árabes e asiáticas – livres de restrições de investimentos – que resolveram entrar de forma agressiva no mercado futebolístico mundial e, passaram a atrair atletas ainda no auge de suas carreiras. O mercado do futebol contemporâneo, mais do que nunca, é baseado no liberalismo econômico, algo que certamente seria criticado e condenado por Marx. Segundo Bauman (2022, p.73), a partir do pensamento marxista, “[…] sempre que uma instituição social aparece numa forma abstrata, como uma entidade em si, levando aparentemente sua própria existência e sujeitos a leis autônomas, podemos suspeitar que por trás dela se encontra o ato histórico da alienação, da transformação de uma parte da capacidade humana numa força que se opõe ao seu fundamento natural”.

Ainda, neste circuito da Futebolização, não esqueçamos dos aficionados – também divididos em múltiplas categorias de torcedores, fãs e seguidores – que ainda apresentam condições sólidas da Modernidade, mas ao mesmo tempo podem trazer aspectos líquidos do novo milênio, como a troca constante de preferências clubísticas baseada nas transferências das celebridades do futebol a cada nova temporada. Conforme defendo, há uma multiplicidade de crianças e jovens que preferem seguir atletas no cenário contemporâneo do futebol a se afiliarem por algum clube e, pelo mesmo terem a cobrança familiar e social de uma fidelidade eterna. Marx talvez adotasse também tal estratégia para não correr o risco de ser associado aos interesses de determinada agremiação ou grupo de dirigentes.

No contexto atual, possivelmente, Marx seria irônico ao ver estas duas últimas revoluções do futebol: a Lei Bosman e a iminente criação da Superliga. Em alguma medida, criadores estão prestes a inclinarem-se diante de suas próprias criações. Conforme alertava o revolucionário socialista, “A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir” (CASTRO 2014, p.13). De acordo com Marx, devemos partir de homens em suas atividades reais e, não do que é dito, imaginado ou representado. Sobre o caráter fetichista da mercadoria, vinculada aos jogadores de futebol – algo que pretendo explorar de forma mais aprofundada em outros textos – vale destacar que “o que interessa na prática, antes de tudo, a quem troca produtos, é a questão de quantos produtos estranhos ele vai adquirir com seu próprio produto, ou seja, em quais proporções os produtos se trocam” (CASTRO 2014, p.18). Fazendo uma analogia com o mundo da bola, podemos pensar com quais valores econômicos estas mercadorias (jovens jogadores de futebol) deixam a América Latina, são transformadas e adquirem “mais-valia” em mercados externos (Europa e, agora, Oriente Médio) e, após perderem seu valor de uso, retornam à origem como moeda de troca por novas matérias primas. Sem dúvida, a publicidade, a midiatização e o fetichismo dos mercados europeu –  e mais recentemente –, asiático e norte-americano do futebol transforma objetos tangíveis (acessíveis) em intangíveis (inacessíveis), criando paralelamente estilos de vida e percepções de status a serem admirados e seguidos por crianças e jovens aficionados.

Marx
Karl Marx: técnico de futebol. Arte: Adriano Kitani.

Mas tudo isso que foi pensado até agora poderia ser desmanchado, caso Marx – assim como outros filósofos fizeram – considerasse o futebol (ou os clubes de futebol) como uma religião. Autodeclarado ateu ou agnóstico, Marx argumentava que a religião era um sistema de crenças criado pelos homens que capacitava a classe dominante a manter seu poder prometendo à classe trabalhadora que as coisas seriam melhores no além. O pobre encontrava consolo na fé porque colheria uma recompensa pelo seu sofrimento. Fazendo a analogia de tais pensamentos com o futebol, Karl Marx poderia dizer que as dificuldades econômicas impedem a maioria das pessoas de encontrar conforto e felicidade verdadeira e, que estas esperanças seriam transferidas para o futebol com falsas perspectivas pela verdadeira felicidade ou pelo possível triunfo sobre o mais forte no campo esportivo, mas isto poderia ser alienante. Então, apesar de oferecer conforto e alegria, o futebol seria o suspiro da criatura oprimida. A síntese do pensamento do sociólogo alemão não alteraria: as pessoas se reúnem em grupos com os quais compartilham interesses sociais e econômicos contra aqueles que estão em conflito por tais interesses. Quando os meios de produção se alteram, há revoluções e a classe dominante é substituída por outra. Ou seja, provavelmente Marx enxergaria a luta de classes sendo reposicionada no futebol, como de fato ocorreu em diversos períodos históricos no planeta.

Finalizando este breve texto e análise superficial sobre algumas possíveis relações de Marx com o futebol, me arrisco a apontar qual seria o clube – ou clubes – preferido do teórico político, bem como seus ídolos no esporte mais popular do planeta. Partindo de um dos pressupostos que defendi em minha tese sobre a Futebolização contemporânea – ou seja, que as identidades ou marcas identitárias do futebol se dão na infância e juventude – penso que Marx seria torcedor de um clube alemão de médio ou baixo destaque, com trajetória errante entre a primeira e a segunda divisão nacional e, sem qualquer possibilidade de chegar à fase de grupos da Champions League. Talvez fosse aficionado o FSV Mainz 05, ou do FC Köln, ou ainda do Fortuna Düsseldorf, devido ao seu local de nascença e infância. Mas poderia também ser torcedor do FC Sankt Pauli por questões políticas, ou do FC Union Berlim já que frequentou a Universidade da capital alemã na fase de jovem-adulto. Com menos chances, teria sido torcedor do Chemnitzer FC, já que a cidade de Chemnitz trocou de nome para Karl-Marx-Stadt por algumas décadas no pós-guerra. E jogadores-celebridades? Quais chamariam atenção de Marx? Certamente aqueles vinculados a causas trabalhadoras e políticas … Mathias Sindelar, Ruben Svensson, Carlos Humberto Caszely, Ivan Ergic, as irmãs Lucia e Margarita Döller, Irena Müller, e os brasileiros Afonsinho, Reinaldo e Sócrates estariam entre aqueles que seriam admirados por Karl Marx. Não tenho aqui espaço e tão menos pretensões de esgotar este debate, para o qual sugiro maior aprofundamento daqueles pesquisadores e investigadores que se interessam por aplicar as teorias marxistas ao futebol. “Segundo Marx, a história vai eliminar a diferença entre aparências e essências, vai expor a verdadeira essência humana das relações e ações sociais, e, portanto, tornará possível compreende-las de maneira genuína o objetiva enquanto aplica os instrumentos de cognição mais triviais e práticos” (BAUMAN 2022, p.67).

Referências

ARAÚJO, Lucas Giachetto; GIGLIO, Sérgio Settani. O Capital no futebol: análise da mercadoria jogador. Cadernos de História, Belo Horizonte, v.22, n.37, novembro de 2021.

BAUMAN, Zygmunt. Hermenêutica e ciência social: abordagens da compreensão. Tradução por Fernando Santos. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

BUCKINGHAM, Will et al.(eds.). O livro da Filosofia. Tradução de Rosemarie Ziegelmaier. São Paulo: Globo, 2011.

CASTRO, Celso. Textos básicos de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

KOCH, Rodrigo. Futebolização: identidades torcedoras da juventude pós-moderna. Brasília, DF: Trampolim Editora/Ministério da Cidadania, 2020.

KOCH, Rodrigo. Cultura, Identidade e Futebolização: na Europa Contemporânea. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2022.

MATIAS, Wagner Barbosa. A economia política do futebol e o “lugar” do Brasil no mercado-mundo da bola. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação Física, Universidade de Brasília (UnB), Distrito Federal, 2018.

PEINADO, Quique. Futbolistas de izquierdas. Benetússer (València, España): Fuera de Ruta, 2022.

PERINA, Fabio. Reflexões marxistas sobre futebol e violênciaLudopédio, São Paulo, v. 147, n. 23, 2021.

The English Game. Inglaterra: Netflix, 2020. Minissérie em 6 episódios.

THORPE, Christopher et al. (eds.). O livro da Sociologia. Tradução de Rafael Longo. 2ª edição. São Paulo: GloboLivros, 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Rodrigo Koch

Pós-Doutor (Sociologia) pelo Institut Universitari de Creativitat i Innovacions Educatives de la Universitat de València, Doutor em Educação (Culturas Juvenis) pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre em Educação (Estudos Culturais) pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), pós-graduado em Administração e Marketing Esportivo pela Universidade Gama Filho (UGF), e graduado em Educação Física pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Vencedor (1º lugar na classificação geral) do Prêmio Brasil de Teses e Dissertações sobre Futebol e Direitos do Torcedor - Edição 2018-2019. Pesquisador Associado do Centro Latino Americano de Estudos em Cultura - CLAEC. Professor adjunto D da Uergs - Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, lotado na unidade Hortênsias-São Francisco de Paula.

Como citar

KOCH, Rodrigo. Marx e o futebol contemporâneo e pós-moderno. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 30, 2024.
Leia também:
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.26

    1974/2024: a solitária revolução portuguesa e lampejos sobre o futebol

    Fabio Perina
  • 178.18

    Hinchas, política y 24M: la Coordinadora de Derechos Humanos del fútbol argentino, emblema de trabajo colectivo

    Verónica Moreira