“Que bom que deu nóis”: O Brasil de Pelotas e sua brasilidade no extremo sul do país
Podemos afirmar que realizamos um sonho e queremos dividir essa experiência com os leitores e leitoras do Ludopédio. Fomos assistir um jogo decisivo da Série D em Pelotas, mais do que isso, fomos assistir uma das maiores equipes do interior do Rio Grande do Sul: o Brasil de Pelotas. Se não é um dos maiores times, com certeza é uma das maiores torcidas do interior.
A construção e o desenvolvimento de uma Pelotas negra
No senso comum foi criado um estereótipo da região sul como branca, tal construção ideológica foi um mecanismo para invisibilizar a contribuição de negros e povos originários em relação a formação do Brasil. Em Pelotas, cidade do extremo sul do estado do Rio Grande do Sul, esse processo não foi diferente.
Ao longo de quase todo o século XIX, a mão de obra cativa da cidade de Pelotas era responsável pela produção da carne de charque ou -também conhecida- carne de sal, na qual era enviada para o restante do Brasil, representando 80 a 85% da comercialização e produção do produto bovino em território nacional. No entanto, embora a presença da comercialização do charque tenha determinado as condições trabalhistas, sociais e raciais em Pelotas, não podemos resumir a presença negra às charqueadas ou somente a escravidão (MACIEL, 2020).
No período do Pós-Abolição, negros e negras se organizaram em sindicatos, irmandades negras e na elaboração de um jornal que, no decorrer de suas páginas, denunciava tanto o racismo quanto as festividades locais, esportes, batizados e casamentos (SANTOS, 2003). O jornal “A Alvorada” (1907-1965), atuava como periódico da imprensa negra gaúcha comunicando notícias de caráter pedagógico e político.
Nesse mesmo período surgiu a Frente Negra Pelotense (1933), órgão de defesa dos direitos e de uma identidade racial única dos negros locais e da região. A Frente também tinha como proposta combater o analfabetismo da população negra.
Concomitante a Frente, surgiram os clubes sociais negros (1917-1931), associações voltadas ao combate do fim do racismo e ao lazer da população afro-pelotense (SILVA, 2011). Entre os principais blocos negros, mencionaremos os citados por Silva (2011): “Depois da Chuva” (1916), “Chove Não Molha” (1919), “Fica Ahí P’ra Ir Dizendo”(1921), “Quem Ri de Nós têm Paixão” (1921) e “Está Tudo Certo” (1931).
Apesar da tentativa de invisibilidade, no qual historicamente ressalta-se apenas as imigrações europeias e sua contribuição para a construção do estado, a população negra de Pelotas constituiu, formou e desenvolveu a cidade e a identidade pelotense. A presença negra é forte nas ruas, praças, bares, teatros, museus, lugares de patrimônio, casas de matriz africana e nos estádios de futebol. Existências em espaços resultantes da luta e resistência do associativismo negro em terras sul-rio-grandense.
O Clube Brasil de Pelotas
O Grêmio Esportivo Brasil de Pelotas, clube localizado geograficamente no extremo sul do Brasil, tem sua fundação datada em 7 de setembro de 1911. Foi o primeiro clube campeão do Campeonato Gaúcho sendo um dos representantes gaúchos em competições nacionais.
Aqui mesmo no Ludopédio já foi escrito um trabalho sobre a cidade e o principal clássico. Daniel da Conceição (2020) traz, através da narrativa, sua emoção como torcedor xavante e o amor pelo time da cidade, antagônico a polarização do Rio Grande do Sul entre Internacional e Grêmio. Destaca-se que é muito difícil alguma cidade do RS sair fora da dicotomia torcedora da dupla Gre-Nal.
O Canal Peleja também conta um pouco da história da torcida do Brasil no vídeo “O Xavante é a força do interior”, exibido no episódio #ForadoEixo52.
O Xavante, como é conhecido, é a maior equipe de Pelotas e uma das maiores do RS. Podemos afirmar que não é um time que tem torcida e sim uma torcida que tem um time. Beleza e festa realmente singular no interior do RS.
Além de todo o calor que o samba pré-jogo proporciona e a cerveja que ensaia a garganta pra cantar o grito na arquibancada, a equipe do Xavante também é -historicamente- política: foi o primeiro clube a aceitar jogadores negros na cidade, refletindo no perfil de sua torcida, sendo um grande número de torcedores dos bairros periféricos e negros de Pelotas (MACIEL, 2020). Por causa deste e outros fatores a equipe é conhecida como “Clube do Povo”.
O estilo brasileiro de torcer e suas torcidas organizadas
Podemos apontar que as torcidas organizadas do Brasil de Pelotas não se transformaram ou não criaram torcidas barras “bravas”, sendo que grande parte das torcidas do RS e seu maior rival, o Pelotas, possuem essa forma platinizada de torcer. A platinização do torcer iniciou no RS em meados dos anos 2000 (OLIVEIRA, 2023). Quando questionamos o porquê disso, um integrante da torcida Esquadrão Xavante afirmou: “O estilo charanga faz parte do torcedor xavante, o samba é a essência do torcedor do Brasil”. A este fato, também observa-se que seus torcedores estão envolvidos com as festas populares da cidade, como o carnaval.
Mediante uma colaboração conjunta, as torcidas organizadas do Brasil de Pelotas (Camisa 7, Núcleo 1911, além de componentes e diretores de outras organizadas), uniram forças e intensificaram significativamente o apoio à equipe. Após a união dessas torcidas, surgiu o Movimento Independente Esquadrão Xavante, torcida organizada que se localiza na parte lateral do estádio, em frente às cabines de imprensa. Destaca-se que a torcida Esquadrão Xavante recentemente inaugurou um novo núcleo em sua torcida. Protagonizado por mulheres, o Núcleo Feminino do Esquadrão Xavante eleva o som da Baixada ao enfatizar o lema “Uma por todas e todas pelo Brasil”.
Outra histórica e importante torcida organizada é a Torcida Máfia Xavante, que possui 32 anos de existência, localizando-se atrás do gol durante os jogos. Torcida que possui grande história, configurando entre uma das mais importantes do interior.
Há também a Garra Xavante, uma das mais antigas torcidas do RS, criada em 1979, reunindo musicistas profissionais, puxadores de escola de samba e pessoas de bairros pobres da cidade. É o coração do estádio, levando diversos instrumentos percussivos e instrumentos de sopro. A Garra conta com cerca de 50 músicos, sendo que cada um tem seu próprio instrumento musical (MACIEL, 2020). É uma torcida estilo charanga, parecido com a primeira organização torcedora, as chamadas torcidas uniformizadas (HOLLANDA, 2012). Atualmente a Garra Xavante e a Esquadrão Xavante ficam juntas no mesmo setor.
Em relação a Garra Xavante indicamos o documentário no youtube “Garra Xavante- Um documentário musical”.
Pré- jogo
Antes da partida, as ruas tomavam as cores com a camisa rubro-negra, próximo ao estádio a confiança dos torcedores era maior do que qualquer desconfiança. A equipe perdeu o jogo anterior e não dependia somente de si, precisava de uma combinação de resultados como a vitória no seu jogo e o Caxias, que enfrentava o São Joseense, precisava vencer.
Andando pelas ruas próximas ao estádio lembramos do grande historiador e educador Luiz Antônio Simas em seu livro “O Corpo Encantado das Ruas”, no qual fala sobre a “gramática dos tambores”. Ele relata que os surdos das baterias são campos de vivências que desamarram o mundo e “(…) a função do surdo é fazer a marcação do tempo. O samba é um ritmo de compasso binário” (SIMAS, p.26, 2022).
Foi com o sentimento descrito por Simas que, quase em frente a entrada principal, uma roda de samba se fazia presente próximo ao horário da partida, a rua estava fechada pelo grande número de torcedores que acompanhavam aquela batucada. Mistura encantadora de se ver!
Próximo do horário de início do jogo, os torcedores saem do samba e “caem” direto no estádio, entram ao som da Charanga que já se fazia presente na arquibancada.
A festa também dá lugar à memória trágica que percorre a história do Xavante. Na foto abaixo, podemos ver a faixa “Xavabeer” e uma bandeira do Uruguai sobre ela. Essa bandeira do Uruguai representa a lembrança do ídolo Cláudio Milar, falecido no acidente de ônibus em 2005 que vitimou parte da equipe. Milar era uruguaio e reconhecido como goleador do time.
Olhos no Brasil, ouvidos no Caxias e coração batendo no compasso do atabaque
O Brasil de Pelotas enfrentou uma partida decisiva contra a equipe do Concórdia de Santa Catarina pela última rodada da primeira fase da Série D. Partida difícil. No primeiro tempo a equipe Xavante empatava o jogo por 0x0 e o Caxias, até o momento, perdia o seu jogo. O cenário era aflitivo e o Brasil de Pelotas dava adeus a classificação. Porém, no estádio Bento Freitas, nada é impossível. O Brasil foi empurrado pelos surdos, atabaques, sopapos, reco-reco, cuíca e até mesmo uma gaita de boca embalava o grito para o gol da vitória que veio aos 6 minutos do segundo tempo.
Bandeiras e cantos se faziam presentes na torcida Esquadrão Xavante e na Máfia Xavante atrás do gol. Faltava o Caxias fazer sua parte. E aconteceu. Durante o segundo tempo, as arquibancadas gritaram e sinalizaram para os jogadores que o Caxias havia feito o gol da virada aos 39 minutos do segundo tempo. No extremo sul do Brasil teve carnaval fora de época e a cervejada marcou a “gramática dos tambores” em que o surdo não fazia mais a marcação do tempo e ninguém tinha horário para retornar pra casa.
O que nos chamou atenção foram os atabaques na arquibancada, particularmente nunca tínhamos visto esse instrumento como forma de ritmo torcedora. É a cultura afro-pelotense na arquibancada. No intervalo do jogo, o campo abre licença para que crianças indígenas manifestem sua cultura e sua presença no estádio e na cidade de Pelotas. É a resistência do Brasil evidenciada.
No fim do nosso passeio em terras pelotenses, fizemos todo o percurso digno de turistas entusiasmados: futebol, samba e bauru. Ao pagar o lanche popular da cidade, um dos trabalhadores perguntou de qual lugar éramos. Informamos que vínhamos de Santa Maria e excepcionalmente para assistir o jogo do Xavante. Prontamente o garçom nos olhou e sorrindo “de orelha a orelha” exclamou: “Beei, vieram de longe! Que bom que deu nóis!”
Citando Galeano (2015), o trabalhador que nos atendeu era o jogador número 12 e entendia muito bem que é ele quem sopra os ventos do fervor que empurram a bola quando ela dorme.
Referências Bibliográficas
CONCEIÇÃO, Daniel Machado da. O Bra-Pel não é só mais um derby, ele é rivalidade contabilizada em emoção. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 63, 2020.
FERREIRA, Leonardo Tajes. Documentário “Olhares sobre Pelotas – A sociedade do Charque”. YouTube, 11/01/2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LuSDyg964LY&t=129s
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: LP&M, 2015.
HOLLANDA, Bernardo de. A festa competitiva: formação e crise das torcidas organizadas entre 1950 e 1980. In: HOLLANDA, Bernardo B. B.; SANTOS, João M. C. M.; TOLEDO, Luiz H.; e MELO, Victor A. A Torcida Brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, p. 85-122.
MACIEL, Everton da Cunha. Etnografia da performance e agenciamento de uma charanga: Estudo etnomusicológico sobre a Garra Xavante. 2020. 102 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2020.
OLIVEIRA, Elias Cósta de. “Pasos al costado”: uma história do processo de constituição das barras e a platinização do torcer no Rio Grande do Sul (2001-2011). Manancial Repositório Digital da Ufsm, 2023. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/29638
SANTOS, José Antônio. Raiou a Alvorada: Intelectuais negros e imprensa – Pelotas (1907–1957). Pelotas: Ed. Universitária, 2003, v.7.
SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Editora José Olympio, 2022.
SILVA, Fernanda Oliveira da. A busca por uma unidade identitária negra em terras sulinas no pós- Abolição: Imprensa negra: Frente Negra Pelotense e Clubes Sociais Negros em Pelotas-RS (1907-1937). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1313005512_ARQUIVO_AbuscaporumaunidadeidentitarianegraemterrassulinasnoposAbolicao.pdf).
SILVA, Fernanda Oliveira da. Associativismo negro em terras sulinas: das irmandades aos clubes para negros em Pelotas (1820-1943). Revista Thema, v. 8, n. 2, 2011. Disponível em: https://periodicos.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/99