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Por que a Revista Placar optou por não “manchetar” a Copa do Mundo Feminina 2023?

Passado o ciclo de quatro anos de duas históricas edições relativas ao futebol de mulheres, a Revista Placar voltou a dar um espaço de maior destaque à modalidade. Se por um lado, existe uma inequívoca frustração por ver a mais longeva e importante revista nacional esportiva (RIBEIRO, 2007) perder a oportunidade de trazer a Copa do Mundo Feminina 2023 como manchete, por outro não se pode desprezar mais uma casa andada com avanços que pontuaremos. O ponto é: já não era momento suficiente para solidificar essa evolução com uma nova capa dedicada à modalidade?

Em dezembro de 2020, publiquei a dissertação Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres. Valores-notícia (VN) como “Musa ou modelo atleta”, pouco a pouco, ficaram para trás em detrimento de outros que surgiram – como, por exemplo, a figura de “Marta” como VN por si mesma.

O fato é que, historicamente, existe uma espécie de “estica e puxa” com o desenvolvimento do futebol de mulheres. Isso faz com que especialmente as pesquisadoras e pesquisadores, mas também torcedores, as próprias atletas e pessoas que fazem a modalidade, estejam sempre “armados” para contra-atacar ao mínimo sinal de retrocesso. Talvez até mais: a quebra no ritmo de evolução é, hoje, suficiente para críticas. Difícil julgar sem sentir na pele. E não é só sentir, há ciência envolvida nesse protesto.

Faz quase duas décadas que Ludmila Mourão e Marcia Morel (2005) observaram o que chamaram de “efeito sanfona” na cobertura do futebol de mulheres no Brasil. Mais de dez anos depois, Leda Costa (2017, p. 505) basicamente repetiu o cenário em outro contexto, já mais próximo ao atual, ao afirmar (e prever) que “outros booms do futebol feminino poderão ser notados de tempos em tempos”. Eu entendo que as duas afirmações são didáticas para que evitemos precipitações na análise que cerca a modalidade e, mais do que isso, as citações permanecem atualíssimas.

Seguramente, sem tensionamento, pouco teria mudado. Foi, por exemplo, fruto do jornalismo feminista das Dibradoras que a Placar, na histórica edição 1453 de julho de 2019, realizou o passo mais emblemático do seu revisionismo histórico relativo ao futebol de mulheres. Aquele editorial, sob o título “A busca pela igualdade”, trouxe um pedido de desculpas histórico pela trajetória machista da revista ao noticiar, não só o futebol de mulheres, mas as mulheres no esporte como um todo. “Nas décadas de 1980 e 1990, olhávamos o futebol feminino com uma visão equivocada, quase objetificando as mulheres jogadoras. Pedimos perdão por aquele período de ignorância e buscamos evoluir” (PLACAR, 2019, ed. 1453). Mas a Placar, a instituição precisa entender que não adianta se desculpar na teoria e falhar na prática.

Futebol de mulheres
Imagem: Revista Placar/Reprodução

O editorial foi escrito pelo jornalista Ricardo Corrêa, à época no comando da revista. Apesar de não estar assinado, ele confirmou à nossa pesquisa ter escrito o texto e que a ideia partiu de uma publicação das Dibradoras. O sucesso da Copa do Mundo, com audiências recordes nas televisões do Brasil e do mundo (BARRETO JANUÁRIO; LIMA; LEAL, 2020) aguçou ainda mais o progressivo interesse da Placar pelo futebol de mulheres. A edição 1457, mais uma vez histórica, trouxe pela primeira vez na história do cinquentenário periódico (LEAL, MESQUITA, 2021) uma jogadora de futebol sozinha na capa: Marta. Foi uma edição inteira – e até hoje única – dedicada exclusivamente ao futebol de mulheres.

Placar, edição 1501, julho de 2023

No mês da nona edição do Mundial Fifa para o futebol de mulheres, a revista Placar ficou entre a frustração e o progresso. O primeiro, obviamente, por não ver novamente uma edição exclusiva dedica ao futebol de mulheres e, pior, não ter sequer a capa da revista dedicada ao tema. Avanço porque, sim, a revista, na obrigação jornalística de noticiar o fato, deu um passo adiante na sua lenta, mas gradual caminhada de evolução.

Primeiramente, vale salientar que a revista está novamente sob nova direção. Desde o final de 2022 a Editora Abril realizou um acordo de licenciamento da marca, que passou a ser administrada pela Score Editora, do empresário carioca Alan Zelazo. Leal e Mesquita (2021) trazem um histórico detalhado da história do periódico.

A mudança, obviamente, impacta diretamente na linha editorial da revista. Internamente, a decisão de escolher Casemiro, jogador do Manchester United, em detrimento à Copa Feminina, foi questionada e alvo de debates. A partir de fontes consultadas pela nossa pesquisa, ficamos sabendo que foi difícil convencer parte da direção de que valeria ter um guia da Copa – o primeiro já feito.

Futebol de mulheres
Imagem: Revista Placar/Reprodução

Teria pesado a favor da capa com um jogador o “público raiz” da revista, composto majoritariamente por consumidores homens e do futebol masculino. Neste contexto, a revista ainda recebeu um convite para ir à Inglaterra entrevistar Casemiro. A negociação para essa exclusiva era ter o atleta da Seleção Brasileira como capa da revista.

A solução encontrada foi dividir os esforços: metade Especial Premier e metade guia da Copa feminina. Na capa, inclusive, há uma chamada para o guia feminino em que a atacante Debinha, destaque da Seleção, aparece numa fotografia menor, no canto inferior. O esforço de alguns por ter uma mulher na capa acabou sendo um tiro pela culatra, a partir de uma questão semiótica em que a mulher aparece inferiorizada em detrimento do homem, reforçando o lugar de subalternidade dado pela revista ao futebol de mulheres mesmo às vésperas da maior competição mundial da modalidade.

Outro ponto destacado, de acordo com a nossa apuração, foi a dificuldade em entrevistar nomes como Bia Zaneratto e Marta, com assessorias de difícil diálogo. Diante isso, a Placar trouxe 33 páginas, com ótimo conteúdo – incluindo material de colaboradores, como a historiadora Aira Bonfim, hoje uma das maiores referências sobre a modalidade no país.

O balanço interno da equipe comandada pelo jornalista Fábio Altman é de que a decisão foi acertada. A repercussão mundial com a entrevista exclusiva com Casemiro teria valido a pena. Além disso, a revista comemora o fato de ter mais repórteres na equipe – casos de Bianca Molina, Isabela Labate e Maria Fernanda Lemos. Existe, de fato, um quê de progresso freado por iminentes questões mercadológicas e mesmo construcionistas – afinal, no mundo, há um machismo enraizado. É inegável, e louvável, o esforço que parte da equipe faz para dar espaço (com conteúdo qualificado!) ao futebol feminino.

Mas até que ponto, na sociedade atual, ignorar a relevância de ter uma manchete com uma jogadora de futebol na capa seria menos impactante? Quanto de imagem positiva a revista conseguiu agregar à marca com a capa de Marta em 2019? Que mensagens ao mercado/público a Placar passa, ou deixa de passar, ao perder a oportunidade de “manchetar” o Mundial Feminino? Será que o “impacto mundial” pontual com a entrevista de Casemiro seria mesmo maior do que uma Debinha reinando à frente da maior revista esportiva do país? São ponderações a fazer.

No editorial, inclusive, a revista traz uma nova reflexão sobre a relevância de dar espaço ao futebol de mulheres e à evolução da modalidade. Num trecho, o texto diz:

“Haverá sempre algum incômodo relativismo, ‘porque os humores eram outros, a sociedade era outra, o machismo imperava, etc., etc.’ – nós mesmos, de PLACAR, fomos dar a primeira capa da revista exclusivamente dedicada a mulheres em 2019, com uma foto da rainha Marta. Mas não pode ser assim, o jogo tem de mudar”.

De fato, o jogo tem de mudar. Vamos juntos?

Referências

BARRETO JANUÁRIO, Soraya.; LIMA, Cecília.; LEAL, Daniel. Futebol de mulheres na agenda da grande mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019. Observatório (OBS*), v. 14, n.4, December, 2020.

COSTA, Leda. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 13, p. 493-507, 2017.

LEAL, Daniel. Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2020.

LEAL, Daniel, MESQUITA, Giovana. A singularidade da cinquentenária Placar para o contexto histórico do jornalismo esportivo no Brasil. Sur le journalisme, About journalism, Sobre jornalismo [En ligne, online], Vol 10, n°2 – 2021.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia impressa em campo. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 26, n. 2, p. 73-86, 2005.

PLACAR. São Paulo: ed. Abril, edição 1453, jul., 2019.

______. São Paulo: ed. Abril, edição 1457, nov., 2019.

______. São Paulo: ed. Score, edição 1501, jul., 2023.

RIBEIRO, André. Os donos do espetáculo: histórias da imprensa esportiva do Brasil. São Paulo: Terceiro Nome, 2007.

*Este texto foi originalmente publicado no Blog do Leme.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Leal

Jornalista pernambucano com mais de dez anos de atividade como repórter esportivo. Mestre e doutorando em Comunicação pela Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Especialista em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais, pela Faculdade Estácio de Sá, e graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo, pela Universidade Católica de Pernambuco. Membro do Observatório de Mídia: gênero, democracia e direitos Humanos (OBMIDIA UFPE) e da Rede nordestina de estudos em Mídia e Esporte (ReNEme). Pesquisador das temáticas ligadas ao Futebol, Jornalismo, Audiência e Comunicação. E-mail: [email protected]

Como citar

LEAL, Daniel. Por que a Revista Placar optou por não “manchetar” a Copa do Mundo Feminina 2023?. Ludopédio, São Paulo, v. 169, n. 26, 2023.
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